sábado, 12 de fevereiro de 2011

O Proceso de dominação ético-religioso da América Latina

José de Deus Luongo da Silveira [1]
RESUMO: A imposição dos valores ético-religiosos da metrópole, com o maciço processo de evangelização desenvolvido pelos reinos de Portugal e Espanha, nas terras do Novo Mundo, nos séc. XVI até a primeira metade do séc. XVIII, constitui-se num dos suportes responsáveis pela falta de identidade latino-americana.
UNITERMOS: Imposição de cultura, metrópole, colônia, identidade latino-americana. 
1.   INTRODUÇÃO
Articular historicamente acontecimentos passados não significa conhecê-los 'como propriamente aconteceram'. Significa apoderar-se de uma memória, como ela relampagueia no momento de um perigo.  
                                                         Walter Benjamin
                                      
      Com a conquista da América Latina pelos portugueses e espanhóis, idealizada como uma terra de densas florestas, de abundância de vida animal e de incontáveis riquezas, começa a se articular o mito do paraíso terrestre[2]. Esse primeiro mito fundador é apoteótico, se vincula à fé cristã e ao imperativo de transmiti-la aos habitantes do Novo Mundo. Na perspectiva da tradição judaico-cristã dos conquistadores, a chegada ao novo continente foi providencial, ou seja, deu-se por vontade de Deus e para o triunfo da civilização cristã[3].  Na América Latina repetem-se os mesmos traços da origem do fenômeno religioso, encontrados em outras terras. Trata-se do sentido e da dimensão histórica da experiência religiosa calcada num mito de origem, num acontecimento histórico do passado, que pode ser desvelado inteiramente, ou permanecer parcialmente mergulhado na bruma do tempo, como uma experiência comunitária, contudo, tem a força de comunicar um sentido sagrado, salvífico ou soteriológico[4].
      Sem o horizonte histórico não se pode interpretar o sentido da experiência religiosa, uma vez que a revelação não acontece numa dimensão atemporal, mas inserida dentro de contextos histórico-relacionais. Assim, a revelação não é particular, mas comunitária e prenhe de historicidade. Num determinado lugar e tempo há a emergência de uma doutrina, com um significado original. Essa experiência do sagrado, quer tenha origem em um líder religioso quer se espalhe no meio do povo, espontaneamente, sem que se possa determinar a sua procedência histórica, transforma-se num mito[5], numa  narrativa fantástica  e imaginária, carregada de relatos sobre a vida de forma sobrenatural, através da qual se tenta explicar a realidade. É sempre uma interpretação simbólica e ingênua, “um saber não unificado”[6], cujo caráter cosmogônico, traduz um fato religioso.
       O mito fundador do paraíso terrestre[7], do jardim perfeito, estabelece um vínculo interno com o passado e se renova para exprimir novos campos de sentido. A sua simbolização permanece com a força de origem, que se repete e se atualiza ao longo do tempo, para comprovar a sua pertinência. Isso acontece, porque o homem é um animal de sinais e símbolos, de signos significantes que realizam a mediação entre o mundo “visível e funcional e o invisível e modelar[8]”, entre o vivenciado e o imaginário. Os grandes símbolos religiosos são criados ou descobertos[9] e permanecem no horizonte da humanidade como estruturas ontológicas subjacentes ou realidades intuídas. Trata-se do sagrado, da linguagem inconsciente do mistério, algo que está mais além (o anda não), se constitui numa ordem simbólica, num campo aberto a vários campos de sentido. Por isso, nunca se esgotam as possibilidades de interpretação dos símbolos religiosos, eles são arquétipos com cunho transpessoal e estão na raiz da nossa experiência existencial.
It is impossible to give an exact definition of the archetype, and the best we can hope to do is to suggest its general implications by "talking around" it. For the achetype represents a profound riddle surpassing our rational comprehension: (...) there is some part of its meaning that always remains unknown and defies formulation. Consequently a certain element of the "as if" must enter into any interpretation[10].  (É impossível alcançar uma definição exata de arquétipo; e o melhor que podemos fazer é sugerir as suas implicações gerais, estabelecendo uma abordagem "em torno do tema", porque o arquétipo representa um enigma profundo, que ultrapassa a nossa compreensão racional: (...) uma parte do seu sentido permanecerá sempre intangível e avessa à formulação. Conseqüentemente, um certo elemento de "como se" comporá, necessariamente, qualquer interpretação.[11])
        A história apresenta a existência do fenômeno religioso como um dos grandes símbolos, algo que se encontra no imaginário comum de todos os povos, de todos os tempos e lugares. A religião, como o significado da vida e do mundo se apresenta à consciência como algo inserido num contexto relacional[12], que se articula para a formação de uma dimensão axiológica dentro das relações de tempo e espaço[13], portanto, dentro da história. A intercomplementaridade do mundo interior e exterior dá sentido à vida das pessoas e se constituem num corpo de verdades que determina o seu agir e o seu lugar no mundo. O sujeito epistemológico responsável pela formação das estruturas cognitivas realiza a função de re/construção da realidade e marca o nível de interação mental entre o mundo funcional e o mundo modelar.  Na verdade, os símbolos religiosos são semióticos, exprimem o mistério, o desconhecido, trata-se de “um corpo distinto de conhecimento [...] uma visão dinâmica da significação enquanto processo[14]”.
       O cristianismo trazido para a América Latina, através do catolicismo (como as grandes religiões), não se contenta em recorrer somente à experiência religiosa, há o “kérygma[15]” de uma fé encarnada na história dos homens. Existe um momento inicial, focal, de construção da fé numa comunidade específica e que se sedimenta ao longo da história desse povo (exemplo: a catequese dos índios). A partir dessa constatação, o fenômeno religioso  deixa de ter uma dimensão geral, indeterminada, ou se afasta do resultado de uma iluminação individual, para expressar algo que nasce numa comunidade, na qual a revelação se fez sentir  -  a experiência imediata da fé. Esse marco, prenhe de historicidade, traz a fé à esfera de cognição, contudo, o seu princípio arquitetônico transcende as dimensões do tempo e do espaço, porque expressa uma realidade sobrenatural.
        Desse modo, os símbolos, de modo especial os símbolos religiosos, constituem-se na primeira e original leitura do mundo. E quando o homem se satura da fragilidade das sínteses científicas, que não respondem o sentido da vida, volta a abrigar-se na fé. A fé renasce e avança no mundo contemporâneo, apesar das suas ambigüidades.
       O sentido e a dimensão histórica da experiência religiosa consiste, especificamente, numa possível compatibilidade, ou uma aliança entre  a imanência histórica e a idéia de transcendência. Contudo, essa síntese satisfatória, a conciliação entre o profano e o sagrado, entre o temporal e o atemporal, torna-se difícil hoje, como foi para os conquistadores há 500 anos. Corre-se duplo risco, de um lado, a interpretação restritiva da fé, com a imposição de uma estrutura ético-religiosa, que se transforma em verdades absolutas, como fizeram os  portugueses e espanhóis; de outro lado, a ausência do sagrado conduz à pura facticidade do imanentismo secularista, responsável pelo caráter dramático da desesperança nesse início do terceiro milênio.
2. ORIGEM DA IDENTIDADE COLONIAL LATINO-AMERICANA: IMPOSIÇÃO DE CULTURA ÉTICO-RELIGIOSA
A) Antecedentes histórico-institucionais da América latina: Existem vários estudos para resgatar o sentido do projeto colonizador[16], que esteve sempre vinculado às estruturas histórico-institucionais das duas metrópoles: Portugal e Espanha. Contudo, se o projeto colonizador pretendia manter nas colônias da América Latina os suportes sócio-jurídico-culturais da metrópole, também, havia a necessidade da criação de uma estrutura própria, em razão da diversidade de situação, o que impunha um maior controle do poder central sobre as colônias, em razão do interesse político-econômico  espoliativo, já que a principal função da colonização era aumentar os domínios da coroa e prover a metrópole das riquezas existentes nas novas terras conquistadas.  Para a inserção e conservação do domínio colonial na América Latina, além da estrutura político-jurídica, a metrópole contou com um suporte indispensável, algo intangível e que está na raiz da experiência existencial do homem: o fenômeno religioso. A expansão da cultura ético-religiosa européia provocada pelo ardor missionário, principalmente, dos jesuítas e dos franciscanos,  se constituía numa ferramenta vantajosa aos interesses da metrópole. Mesmo porque, o entrelaçamento das relações entre o catolicismo e a coroa portuguesa e espanhola conferia às instituições estatais um caráter de solidez e legitimidade. A unidade da igreja significava uma bússola segura para a unidade dos reinos e do padrão cultural de colonização. Dentro desta perspectiva (do séc. XVI até a primeira metade do séc. XVIII), a dilatação das fronteiras do catolicismo, com a sua implantação nas Índias Ocidentais, oferecia a certeza da reprodução de um comportamento útil à metrópole, uma vez que os missionários permaneciam diretamente vinculados à coroa, pelo sistema do padroado.
Segundo este sistema, nenhum clérigo podia partir para as missões sem autorização explícita do rei. Os que recebiam a permissão para partir eram obrigados a jurar fidelidade ao soberano, durante a audiência que este lhes concedia. Os futuros missionários eram obrigados a reunir-se em Lisboa antes de partir, e para sua viagem deveriam utilizar exclusivamente navios portugueses. Os missionários estrangeiros estavam submetidos às mesmas formalidades; mas a permissão de viagem lhes era concedida com maior parcimônia[17].
B) Imposição de cultura ético-religiosa: A identidade religiosa lusitana e espanhola de além-mar servia aos interesses das coroas, a ponto de não existir uma fronteira muito clara entre o poder temporal e o poder espiritual, que em alguns momentos se confundiam. Izabel, a Rainha Católica de Castela, tinha obtido do papa a atribuição, o “munus” de nomear bispos (investidura), criar mosteiros e conventos de ordens religiosas e implantar a inquisição em seus domínios, tudo para prover as necessidades de expansão do catolicismo nas terras de Castela, de aquém e além-mar. Por sua vez, com menor intensidade, esse mesmo processo se desenvolveu, também, no Reino de Portugal.
       Como o projeto colonizador, além das instituições político-jurídicas, se sustentava através do suporte ético-religioso, foram enviadas às novas terras verdadeiras legiões de missionários jesuítas e franciscanos, que além de atenderem às necessidades espirituais dos colonizadores, se embrenhavam nas florestas para trazerem os pagãos[18] “à verdadeira fé”. Essa idéia de uma única religião e de uma única igreja verdadeira acompanhou o catolicismo até os tempos contemporâneos[19] e, na Idade Média, já havia obrigado, compulsoriamente, os judeus que habitavam os reinos de Espanha e Portugal, a se converterem ao catolicismo (cristãos novos). Corroborando a doutrina de uma única igreja verdadeira, o Papa Bonifácio VIII, já no ano de 1200, proclamou que fora da igreja não havia salvação, através da regra “extra ecclesian nulla salus”, com o que se ascende o poder espiritual sobre o poder temporal.   
       Esse processo de evangelização forçada dos índios americanos, e mais tarde dos escravos negros, foi uma das maiores espoliações culturais que se tem notícia na história da humanidade. A perda da identidade religiosa significa a privação dos valores que se sedimentaram ao longo de tempo e que expressa a maneira de um povo pensar, sentir e agir. O próprio Padre José da Nóbrega já reconhecia que os índios eram depositários de uma sagrada tradição religiosa:  
De tantos em tantos anos chegam uns feiticeiros de longas terras, fingindo trazer santidade; ao tempo de sua chegada, mandam limpar os caminhos, e os vão receber com danças e festas segundo o seu costume; e antes que cheguem ao lugar, vão as mulheres duas a duas pelas casas, dizendo publicamente as faltas que fizeram a seus maridos, e umas às outras, pedindo perdão delas. Ao chegar o feiticeiro com muita festa ao lugar, entra numa casa escura, e coloca aí uma cabaça em figura humana, por ele trazida… de maneia que crêem existir dentro da cabeça alguma coisa santa e divina. Estes são os maiores inimigos que aqui temos, e crer algumas vezes aos doentes que nós lhes colocamos no corpo facas, tesouras e coisas semelhantes e que com isso os matamos. Em suas guerras aconselham-se com eles…[21].
3.  O OLHAR CRÍTICO DE BARTOLOMEU LAS CASAS  –  O HERÓI DOS INDÍGENAS
               Em toda essa história de dominação e opressão, houve um homem que depois de conhecer de perto o sofrimento e o extermínio dos habitantes do Novo Mundo, tendo inclusive sido cúmplice dos espanhóis no Caribe, decide lutar contra a escravidão dos índios,  esse homem foi Frei Bartomoleu Las Casas  -  o herói dos indígenas da América. Causa-nos surpresa que, naquela época, tão poucos levantaram a  sua voz contra a opressão e o genocídio (...). Os que detinham algum poder não o faziam, porque viviam das benesses da coroa e os que não se abrigavam à sombra do poder, esses, também eram excluídos.
         Quando os espanhóis chegaram na América, no Caribe, os índios os receberam com presentes, com a inocência de amigos, mas os espanhóis se apresentaram implacáveis, caçavam, aprisionavam e queimavam nas fogueiras as lideranças e os nobres. Os maiores massacres foram perpetrados no México e no Peru.
       Os espanhóis usavam o nome da igreja para despojar os índios de suas terras. Era lido um documento em latim justificando a necessidade de passar as terras aos novos donos, explicando que os verdadeiros donos de todas as terras era a Igreja Católica. Caso houvesse resistência eram massacrados. Montezuma e sua corte foram jogados do alto da Pirâmide Sagrada e, por ironia, no mesmo lugar mais tarde, foi construída a catedral católica da cidade do México.
        Bartolomeu las Casas não podia se calar, havia participado, em 1512, da conquista de Cuba e presenciara o comandante da expedição degolar sete mil índios. Diz Bartolomeu Las Casas:
 Os espanhóis, com seus cavalos, espadas e laças começaram a praticar crueldades estranhas; entravam nas vilas, burgos e aldeias, não poupando nem as crianças e os homens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e faziam em pedaços como se estivessem golpeando cordeiros fechados em seu redil. Faziam apostas obre quem, de um só golpe de espada, fenderia e abriria um homem pela metade, ou quem mais habilmente e mas destramente e um só golpe lhe cortaria a cabeça, ou ainda sobre quem abriria melhor as entranhas de um homem de um só golpe.
       Bartolomeu Las Casas propõe o fim do trabalho escravo dos índios, fazendo-os viver em comunidades. Contudo não logrou êxito, porque os próprios índios não souberam interpretar a sua intenção e as comunidades espanholas da América o hostilizavam. Contudo, a sua luta foi sem tréguas até a sua morte, aos 92 anos de idade, no ano de 1566.
       Já o processo de colonização portuguesa não se apresentou de forma tão violenta como os massacres ocorridos nas terras espanholas do Novo Mundo. No Brasil, a catequese dos índios ficou por conta dos jesuítas, que se apresentam mais hábeis em conciliar os interesses políticos da coroa com a conversão dos pagãos, mantendo-os pacíficos nas aldeias, sob maciço processo de catequização. É óbvio, que esse processo forçado de evangelização, muito mais em terras espanholas, desenvolvido pelos franciscanos e dominicanos, causou seqüelas permanentes, ainda hoje, o negro e o índio são excluídos da sociedade, se mostram arredios e desconfiados, possuem uma religiosidade católica superficial e nunca abandonaram os seus antigos ritos e costumes religiosos, esses, subjazem mesclados com o culto católico.  Isso prova, inarredavelmente, que não é com as armas que se mata uma idéia. Não é exterminando, massacrando comunidades interiras que se impõe a lei do colonizador. Uma idéia só se mata com outra idéia. Conduto, a cultura e a religião do conquistador não foram suficientemente fortes, capazes de suplantar os costumes e tradições tribais. Após séculos de dominação, elas renasceram e se perpetuaram. Na verdade nunca morreram, permaneceram ocultas  até o momento de se tornarem visíveis.
4.  CONCLUSÃO
        Nenhuma forma de aculturação é mais violenta que o processo de catequização forçada. O processo ético-religioso lida com as categorias do inconsciente, com um enigma profundo que ultrapassa a nossa compreensão racional e estabelece uma nova estrutura conceitual da realidade, um novo filtro pelo qual vemos o mundo. Se bem sucedida a  aculturação forçada, gera autômatos, sem memória cultural, sem consciência crítica e sem vontade própria; se mal conduzida propicia a revolta e a conduta antissocial.
      Depois desse maciço processo de evangelização e dominação colonial, a pergunta que ainda hoje aflora à nossa consciência é, quem somos nós, latino-americanos? O próprio Bolívar não possuía uma idéia clara dessa identidade latino-americana, ou melhor, essa identidade apresentava-se num contexto de intermediação entre outras culturas e, por isso, tinha uma  compreensão demasiadamente imprecisa.
Não somos europeus, não somos índios, mas sim uma espécie intermédia entre os aborígenes e os espanhóis. Americanos por nascimento e europeus por direito, nos encontramos em meio ao conflito de disputar os títulos de propriedade aos nativos e manter-nos no país que nos viu nascer, contra a oposição dos invasores. De maneira que o nosso caso é extremamente extraordinário e complicado.(...) Estamos colocados num grau inferior ao da servidão". "Mantenhamos presente que o nosso povo não é nem europeu, nem americano do norte, é antes uma composição de África e América do que uma emanação da Europa... é impossível determinar com propriedade a que família humana pertencemos[22].     
        A  Identidade Latino-Americana se apresenta como “a dialética entre o não-ser e o ser-outro”. São vários séculos de dominação etnocêntrica. Herdamos dos conquistadores a língua, os costumes, as instituições e a religião. Os navegantes-descobridores-conquistadores trouxeram para o novo continente a cruz e a espada, a cruz justificava a espada e a espada protegia a cruz. Essa aliança entre a cruz e a espada foi responsável pela exploração, dominação e alienação.  De modo diferente da América do Norte[23], povoada por puritanos e outros grupos étnico-religiosos, que não encontravam na metrópole as condições para a livre manifestação de suas crenças; na América Latina, o colonizador imprimiu o seu padrão religioso. A cultura ético-religiosa européia, o catolicismo da Península Ibérica trazido para o novo continente, encontrava-se prenhe da racionalidade judaico-cristão, tanto na doutrina quanto nos ritos e cerimônias, enquanto  a religiosidade indígena e africana mostrava-se mesclada de misticismo e concepções naturalistas. As práticas religiosas dos índios e dos escravos negros eram consideradas pelo conquistador como demoníacas. Os índios e os negros eram considerados pela igreja como canibais, polígamos e idólatras. E, apesar de toda a vigilância, perseguições e conversões forçadas, apesar do embate com o catolicismo, as tradições religiosas dos indígenas e africanos permaneceram, não na sua pureza original, mas no caldo do sincretismo religioso.
        Historicamente, não há como justificar o descaso e a conivência da igreja com a dominação e a escravidão dos índios e negros.  Hoje, a Igreja fala em “metanóia[24]”, como o único caminho possível de reconciliação. Por ocasião dos 500 de evangelização, o Episcopado Latino-Americano, reunido em Santo Domingos, em 19 de outubro de 1992, procurou resgatar esse passado de genocídio e escravidão cultural, com as chamadas  “Diretrizes de Santo Domingos:
- pedimos perdão aos povos indígenas e aos negros americanos pelas vezes que não soubemos reconhecer a presença de Deus em suas culturas;
- pedimos perdão pelas vezes que confundimos evangelização com imposição da cultura ocidental;
- pedimos perdão pela tolerância ou participação na destruição das culturas indígenas e africanas;
- pedimos perdão aos negros americanos pelas vezes que nos servimos do Evangelho para justificar sua escravidão;
- pedimos perdão pelas vezes que nos beneficiamos desta escravidão nos conventos, paróquias ou cúrias[25]”.
       Os reflexos dessa evangelização forçada ainda permanecem na América Latina. Desse contexto, emerge a idéia de que não temos uma identidade cultural, somos o resultado de vários povos e diferentes culturas. Adotamos,  aferro e fogo, os valores culturais e religiosos dos conquistadores. E cinco séculos não foram suficientes para exorcizar o colonialismo, vivemos na América Latina a oposição entre dois abismos: o não ser e o ser outro.
Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é.  A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética entre o não ser e o ser outro[26].                                         
        Parece que só teremos identidade, quando rompermos com todos os processo de dependência e subordinação à Europa, e agora, aos novos conquistadores, o poderio econômico e tecnológico Norte Americano. É a América subjugando a América. Só que desta vez, dificilmente aparecem exércitos armados (só na América Central). A dominação é sutil e engenhosa, concentra-se na exploração do capital especulativo internacional, que traz  fome,  miséria e exclusão social e faz um continente rico de um povo pobre.
        Pode ser que já tenha chegado o momento de sacudirmos a poeira do tempo e gritarmos como Leopoldo Zea, em “Latino-americano na encrucijada de la história”:
não há índios, nem crioulos nem mestiços, somente homens. Homens que devem tomar consciência de sua humanidade para fazê-la valer e exigir que lhes seja reconhecida. O índio deve tomar a consciência de seu ser homem e atuar como tal nesta América[30].
        Por enquanto, a única identidade que nos unifica na América Latina é a ‘identidade oprimida’, com um forte grau de servidão aos novos colonizadores, que impõem o discurso da globalização. Somos um continente crioulo[27] ou mestiço, onde a idéia do indigenismo[28] e da negritude[29] faz com que sejamos tratados como inferiores. Somos de uma composição cultural heterogênea e continuamos a sonhar não só com o modelo europeu, mas ao longo desse tempo de maturação, também, adotamos a cultura norte americana. É possível também que ainda não tenhamos abandonado o mito fundador, de uma América como o paraíso terrestre, um jardim perfeito, primavera eterna do mundo, que até então, não revelou em sua beleza inigualável.
5. BIBLIOGRAFIA CONSULATADA
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DEELY, John. Semiótica Básica. São Paulo: Ática, 1990.
CHAUÍ, Marilena. O que comemorar? Conferência realizada em 05/10/1999, na PUCSP, Rev. Sentidos da Comemoração, Projeto História 20, EDUC, 2000.
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GARUTTI, Selso. Os Jesuítas e a expansão fronteiriça. Revista GeoNotas, vol. 5,  nº 2. abr/mai/jun 2001, Departamento de Geografia, Universidade Estadual de Maringá.
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HIPERTEXTO: POSIÇÃO DA IGREJA CATÓLICA. Disponível em: (www.fauna.hpg.ig.com. 
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JUNG, G. Complex/Archetype/Symbol in the Psychology of C. G. Jung. London: 
      Routledge & Kegan Paul, 1959.
LAS CASAS, Bartolomeu, Brevíssima Relação da Destruição das Índias. O Paraíso  Destruído. Porto. Alegre, LMP, 1984.
KERN, A. Missões uma utopia política. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982.
MAGALHÃES, Rui. Textos de Hermenêutica, Porto, Ed. Res-Editora Ltda., s/d.
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OLIVEIRA, R.  Identidade, Etnia, Estrutura Social, São Paulo, Pioneiro, 1976.
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SILVEIRA, José de Deus Luongo da. Noções Preliminares de Filosofia do Direito. Porto Alegre: Fabris, 1998.
VERISSIMO, Luiz José. (Tradução: www.rubedo.psc/Artigo/#FOOTINOTE 21).
VILELA, Magno José. Roma e as Práticas Missionárias no Novo Mundo. In REB. 36, 1976.
ZEA, Leopoldo. Latino-americana na encrucijada de la história. In: ASSMANN, Hugo (Org.). Filosofia da Libertação, Mimeo, UNIMEP, Piracicaba, jun/1982.






[1] BENJAMIN, p.1.
[2] CHAUÍ, p. 35-57.
[3] Id.
[4] Parte da teologia que trata da salvação do homem.
[5]Mito: ‘Mythos’ vem do grego, passando por ‘mythu’ do latim e significa ‘palavra’.  Narrativa  simbólica, ligada à cosmogonia, referente a deuses, forças da natureza e/ou  aspectos da vida.
[6]MAGALHÃES, p. 7.
[7] CHAUÍ, p. 50.
[8] MAGALHÃES, p. 7.
[9] Doutrina da Reminiscência, ‘anamnesis’, despertar. Vide Platão, Fedro, 73 a,b.
[10] JUNG, p. 31
[11] VERISSIMO, p. 1.
[12] MERLEAU-PONTY, apud BONOMI, 1974, p. 9.
[13] SILVEIRA, p. 20.
[14] DEELY, p. 42.
[15] Kérigma: de Keryx, palavra grega que significa mensageiro, arauto que proclama a Boa Nova, pregação original cristã.
[16] CHAUÍ, p. 49.
[17] VILELA, p. 412.
[18] PAGUS, originariamente significava ‘campos’, os que habitam os pagus, para onde migravam os adeptos de outras religiões que não queriam aderir ao cristianismo, os quais eram considerados bárbaros.
[19] Só na “Lumen Gentium, parágrafo 10,12,31 e 35”, documento do Concílio Vaticano II, na década de 60, a Igreja Católica passou a chamar os outros credos cristãos de ‘irmãos separados’ e a admitir que o Espírito Santo de Deus sopra também sobre as outras religiões.
[21] PADRE JOSÉ DA NOBREGA, apud  GARUTTI, p. 2.
[22] ASSMANN, p. 13.
[23] As Colônias do Norte (Massachussets) tiveram origem, em 1620, com a perseguição religiosa desencadeada na Inglaterra. Na América exerceram livremente seus credos.
[24] ‘Metanóia’, palavra grega que significa reconciliação, arrependimento, mudança de paradigma.
[25] Diretrizes de Santo Domingos, do Episcopado Latino-Americano, reunido na cidade de Santo Domingos, em 19 de outubro de 1992.
[26] GOMES, p. 1.
[27] Criollo em espanhol e crioulo em português, significa nascido na América, sendo filho de pais europeus.
[28] O indigenismo ainda é considerado como uma forma de mestiçagem, de mescla cultural, de marginalização.
[29] A negritude se transformou num movimento cultural de resgate da cidadania do negro.
[30] ZEA,  p. 68.






[1] Professor de Ética da UNIFRA, Santa Maria, RS.

OS CAMINHOS DA GLOBALIZAÇÃO



(Extraído do livro: SILVEIRA, José de Deus Luongo da. As várias faces do direito:uma crítica ao discurso jurídico tradicional. Londrina: UEL, 2001, p. 91/113).

1.      Os reflexos da nova ordem no campo social
        No começo de um novo milênio, acentuam-se as crises que assolam a sociedade como um todo, constata-se a perda de sentido, de horizonte, da civilização ocidental, marcada pelo grande desenvolvimento técnico-científico e, paradoxalmente, pelo sentimento de isolamento, ansiedade e incertezas do homem pós-moderno.
         A filosofia e a ciência não libertaram o homem de seus velhos fantasmas, pelo contrário, o homem nunca se encontrou tão solitário e angustiado. A ciência quer desvelar o mundo, não há limites para essa escalada, tudo se faz num processo de urgência, como se depois dessa intrépida nova era nada mais restasse, senão o começo da escatologia. A ânsia de reproduzir comportamentos inteligentes no computador, a inteligência artificial, substituindo o homem nas mais diferentes cadeias do processo de produção e as especificidades das conquistas científicas, à primeira vista, parecem mostrar que essa reconstrução dos saberes não se destina à libertação do homem. Antes de mais nada, é um modelo de regras rígidas e frias que apontam sempre para o novo, numa vertiginosidade assombrosa, estabelecendo um confronto entre o imaginário e o real, entre o desenvolvimento técnico-científico e a vida. Essa dualidade se expande, à medida que o homem comum, o homem médio, encontra-se num nível muito elementar para absorver essa abordagem cifrada da ciência. Mesmo não entendendo a mensagem convencional das ciências, com implicações no campo social, não participando do processo que desencadeia as transformações, o homem do povo torna-se sujeito passivo de um universo de signos: globalização, desterritorialização, transculturação etc.
         A classe dominante impõe o discurso, alardeia as vantagens da pós-modernidade nos diferentes campos dos saberes e as conseqüentes transformações que essa vanguarda modernista desencadeia nos campos social, político, econômico, cultural etc. Essa multiplicidade sígnica cria um simulacro da sociedade perfeita, onde a máquina realiza tudo, ou quase tudo, diminuindo os erros de produção e mantendo o controle absoluto de todas as fases do processo. Essa parafernália aumenta o sistema de controle, de dominação das elites  sobre o homem do povo, uma vez que os grupos organizados -  o político, o econômico e a mídia - são os agentes transformadores, com acesso privilegiado ao novo discurso. A vanguarda desenvolvimentista cria novos modelos mentais[1] através da mídia. O homem do povo sabe apenas dizer/falar o nome das novas descobertas, porque a mídia se encarregou de propalá-las, mas desconhece o esquema comunicativo do discurso. A incorporação do discurso implica o acesso ao centro das decisões da nova ordem, nas diferentes modalidades de participação, o que não interessa aos grupos dominantes.
        O novo discurso é poder e poder não se partilha. Concentram-se riquezas, status e poder em centros de controle, como estratégia de ação. O homem do povo só sofre os reflexos da nova ordem global, ele consome o pacote pronto, tanto as novas tecnologias, como as influências das novas categorias epistemológicas. Essa incorporação é de superfície, mas suficiente para absorver, por acumulação imitativa, até mesmo o novo estilo de linguagem, o “[...] estilo parolíbero (derivado de nossas palavras em liberdade) que já circula nos romances de vanguarda e nos jornais; um estilo tipicamente veloz, audacioso, simultaneísta e sintético[2]”.
        Nesse contexto de multimídia, de globalização e transculturação, o homem do povo se torna um mero espectador que não entende o enredo, mas assiste ao espetáculo. Uma parte considerável do povo, no Brasil e nos países marcados pelo estigma da pobreza,  são os excluídos. O excluído, não se trata de uma terceira pessoa, quase uma espécie de pessoa virtual, quando ele mora na esquina da nossa casa ou está caminhando em nossa calçada. Legiões de miseráveis  povoam as favelas dos grandes centros, crianças[3] famintas e maltrapilhas perambulam pelas ruas e praças, num espetáculo de horror. O desemprego em escala, filho bastardo da nova ordem, se alastra como uma praga incontrolável. Como conseqüência, a violência toma conta das cidades, do campo e, nos grandes centros urbanos, a vida humana tem um valor meramente simbólico e, ao final de cada semana, os IMLs  se enchem de cadáveres, como resultado da falência do Estado na área da segurança pública. Enquanto isso, o poder público alardeia a criação de programas para a erradicação da miséria absoluta que nunca chegam. O que chega e, com freqüência, é o poder de polícia do Estado, reprimindo a violência com mais violência. Já os esquadrões da morte, muitos deles formados pela própria polícia, resolvem, de modo simplista, o problema da miséria e da violência com o extermínio sistemático de meninos de rua, pobres, negros e desempregados. Enquanto se desencadeiam esses espetáculos de horror, noticiados quase que diariamente pelos veículos de comunicação social, o Presidente da República viaja para o exterior e fala de um país imaginário que nunca existiu. Esse discurso faz parte da acomodação deliberada das elites  -  são olhos que não vêem e ouvidos que não ouvem.
 2.      Os reflexos da nova ordem no campo jurídico
         Num modelo de interdependência econômica e normativa, o Estado tem menos oportunidade de gerenciamento da sua economia, face ao crescente intervencionismo supraestatal em setores, até então, reservados aos cidadãos. Emerge, inevitavelmente, desse processo a necessidade de desconstitucionalização e desregulamentação[4]  dos direitos coletivos, sob a razão jurídica de que a sobrevivência do Estado pós-moderno está condicionada a uma flexibilização dos padrões legais determinados pelos imperativos de ordem econômica. E, mais, que a tutela governamental dos direitos comunitários integrará, na universalidade, o que é particular e individual. Essa procedimentalização, “prima facie”, se constitui num novo éden, onde a circulação de riquezas, de progresso material desenvolve novas tecnologias e novos benefícios, constituindo-se numa era de fartura inigualável, não fosse o “apartheid social”, as terríveis desigualdades sociais e econômicas e o estado de pobreza absoluta em que está mergulhada grande parte da humanidade[5]. Os maiores problemas, os maiores vilões a serem enfrentados pela mundialização da economia são o desemprego e a pobreza generalizada nos países emergentes, fatores esses associados entre si.
         A argumentação de que a integração econômico-normativa  se converterá em vantagem para os excluídos, à medida em que houver fundos suficientes para a erradicação da pobreza absoluta, não convence. A  experiência caminha em sentido contrário à argumentação. A exploração dos povos pobres pelas nações ricas deste planeta tem acarretado condições de miséria generalizada e, mesmo quando concedem financiamentos externos, estes são pagos com o sacrifício do povo e com a perda da autogestão de suas economias. De outro lado, pode-se argumentar que nenhum país tem o direito de abdicar de uma ampla inserção à economia globalizada de mercado sob a alegação de que existem excluídos do processo de circulação de riquezas. O  entendimento parece ser bem outro; trata-se, acima de tudo, do aproveitamento de oportunidades, mesmo que não haja solução para situações específicas.
            A modernidade, de modo acrítico, parte do pressuposto de que a globalização é inevitável e as forças que se levantam contra a nova ordem econômica e normativa estão fadadas ao fracasso. Se em tempo de globalização já não é possível ter um discurso diferente, se não há como freiar a marcha dos acontecimentos e reverter o processo, se tal não é possível, torna-se absolutamente necessária a luta, para que esse sistema de globalização avassaladora não desfigure ainda mais a face da miséria e da exclusão nos países em via de desenvolvimento. São índices internacionais, para medir o grau de desenvolvimento social dos países, os indicadores educacionais, saúde e renda per capita. Nesses dados estatísticos, o Brasil ocupa um lugar subalterno, o que leva a crer que demandará um tempo considerável para uma eqüitativa distribuição de renda.
            Não é demais repetir os reflexos dessa nova ordem global no campo jurídico que já começam a serem sentidos no Brasil e em outros países periféricos:
2.1  Regressão dos direito humanos:  A implementação dos direitos humanos só é possível se o Estado, através dos órgãos administrativos e do próprio poder judiciário, assegurar/garantir esses direitos. Sem essa instrumentalização do Estado, os direitos humanos são letra morta, porque as garantias são oferecidas contra a ação arbitrária do próprio Estado. Com o processo de desconstitucionalização, desregulamentação e o conseqüente enfraquecimento do poder do Estado, em razão da nova ordem, haverá uma regressão na tutela dos direitos humanos.
2.2  A espúria processualização da esfera administrativa: Mesmo com o enfraquecimento do poder normativo do Estado, o seu espaço de interesse passa a ser regulado e ampliado de modo discriminatório. Para acelerar os procedimentos administrativos, progressivamente, o poder executivo invade a área de competência do judiciário. A sobrenorma determina que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos inerentes[6]”. Na execução extrajudicial, arreda-se o princípio da ampla defesa, o poder executivo investe-se da auto-executoridade de seus próprios atos. Não se instaura o contraditório, não há comunicação dos fatos, não se viabiliza os meios de provas, de recursos e de demais procedimentos regulares. Não há também uma posição igualitária das partes integrantes da relação processual, mesmo porque o órgão diretamente interessado no deslinde do litígio é o próprio julgador. Mais, o texto constitucional determina que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal[7]”. E, ainda, “a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito[8]”. Esse é o exemplo claro do arbítrio, da prepotência de um diploma legal em desarmonia com a norma constitucional.
2.3 Descrédito e enfraquecimento do poder judiciário: Nos últimos tempos, novos ventos trazem vozes de ataques diretos ao poder judiciário, provindas inclusive de outros poderes. É verdade que tem que haver transparência no poder público e que ninguém está acima do bem e do mal, entretanto, tudo isso faz parte de uma polarização maior de desprestígio da justiça que se expressa na crítica contumaz e sistemática, com manipulações ideológicas.
 2.4  Desregulamentação do direito do trabalho: Com o aumento do nível de desemprego, ocasionado pela globalização da economia, as relações laborais tendem a ficar mais tênues.
Com a informatização das linhas de produção, o avanço da terceirização e os novos modos de inserção no mundo do trabalho, a mão-de-obra se desloca para o setor de serviços e a idéia de emprego industrial subjacente à legislação trabalhista entra em crise[9].
       Esse processo de despadronização do direito do trabalho[10] já começou no Brasil, com o afrouxamento da fiscalização estatal - segundo Paulo Pereira, presidente da Força Sindical, 70% dos trabalhadores não recebem o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço[11], e o problema é que os trabalhadores só descobrem essa realidade, na hora de fazer o saque bancário, com novas formas de contratos de trabalho, com a extinção da representação classista na justiça do trabalho e, possivelmente, num futuro próximo, com a extinção do Tribunal Superior do Trabalho.
2.5  Ampliação da esfera de atuação do direito penal: Não é difícil perceber que, com o processo de desemprego em grande escala, essa massa trabalhadora em parte vai alimentar o subemprego e a economia informal, e a grande maioria, sem meios de sobreviverem com dignidade e aviltada pela pobreza, se entregará aos crimes contra a vida, contra o patrimônio, ao tráfico de drogas etc. Formando, na periferia dos grandes centros urbanos, um espaço próprio, onde se desconhece a esfera legal do Estado, a lei e a ordem são impostas por grupos organizados, com “sistemas normativos independentes e colidentes entre si[12]”, o que já ocorre, principalmente, nas favelas da cidade do Rio de Janeiro. Essa situação de marginalidade social obrigará o Estado a dilatar a esfera de abrangência do direito penal com o advento de novos tipos legais, penas mais gravosas e reaparelhamentos dos órgãos policiais, para enfrentar essa situação de desafio e rebelião dos excluídos. Neste contexto, emerge outro problema, o da criminalidade multinacional. Arnaud alerta que “A criminalidade transnacional organiza os ‘espaços ilegais’ e os ‘trânsitos ilegítimos’ em redes locais, regionais e globais[13]”.  
2.6 A criação de órgãos normativos supranacionais: As estruturas políticas estão atreladas ao poder econômico através do processo de transnacionalização da economia e, subseqüentemente, essa mudança será acompanhada pela expansão de normas internacionais reguladoras dos capitais financeiros, das atividades econômicas, estendendo-se a outras áreas de atuação com a criação de órgãos legislativos e judiciários supranacionais, quer de âmbito geral ou regional. A globalização é um processo interativo que começa na economia e se alastra para os demais setores da sociedade. Os blocos regionais, a exemplo da União Européia, criarão seu próprio sistema normativo. Arnaud entende que “A idéia de um direito comunitário europeu e mais precisamente de um direito comunitário da sanção penal começa a impor-se. Opera-se uma mudança na percepção da criminalidade e seus efeitos transnacionais[14]”.
2.7  Uma nova racionalização do Estado: Seria ingênuo admitir que, com a desconstitucionalização, a desregulamentação e o enfraquecimento do poder de coerção do direito positivo, o Estado converter-se-á num ente fraco, brando e impotente, pelo contrário, tornar-se-á intolerante e inflexível na proteção de suas elites, sob a tutela do capital internacional. Entre outras situações, é evidente que o Estado armar-se-á de instrumentos legais para evitar a evasão fiscal. Os mecanismos internacionais dotarão o Estado de instrumentos mais vigorosos para a consecução de seus fins. Arnaud, neste sentido, fala do Estado-gendarme:
A primazia do Direito é pré-condição para uma  governance  global efetiva. (....) O Estado, no contexto econômico e financeiro mundial, ainda desempenha um papel capital, principalmente de fortaleza e de gendarme, mesmo se devemos relativizar as diferenças entre algumas funções estatais que são muitas vezes complementares[15].
       O que resultará enfraquecido são os direitos sociais e individuais, é o homem do povo, os excluídos. O Professor José Eduardo Faria alerta que
Os princípios básicos inerentes aos direitos humanos e sociais  -  liberdade, igualdade e solidariedade, por exemplo  -  levam a pior na colisão frontal com os imperativos categóricos da economia ao extremo. Com isso os ‘excluídos’ do plano econômico se tornam ‘sem-direitos’ no plano jurídico, não mais parecendo como portadores de direitos subjetivos públicos[16].    
           Não  precisa ser apocalíptico para divisar a tempestade que aporta no horizonte, a globalização virará o Brasil pelo avesso. As grandes disparidades sociais existentes, nos países em desenvolvimento, esvaziam qualquer entusiasmo com o advento de uma economia transnacional, onde o que interessa são as regras de alta produtividade, o capital internacional e a centralização das decisões. O capital sem pátria, sem rosto e sem consciência ditará as regras do mercado. Eduardo Lima de Arruda Jr. nos fornece uma imagem do que será o Neocolonialismo Jurisdicista:
Com relação aos países de capitalismo central, o fato de serem ‘pós-modernos’ (sentido ‘pós-industrial’) é sinal de perfeita adequação no plano da acumulação, fundada na expropriação e pilhagem do ‘terceiro mundo’. Em outras palavras, o orgasmo consumista londrino, parisiense e principalmente nova-iorquino é clímax construído graças à exploração da classe trabalhadora da periferia[17].
       Parece difícil acreditar numa nova ordem mundial, sadia e duradoura que  seja alicerçada na solidariedade entre indivíduos e povos.
       Todo esse quadro de mudanças causa inquietações, a globalização carrega consigo a idéia falsa de uma vida boa, de um mundo economicamente estável, sintonizado com os avanços da técnica e cheio de novas oportunidades. A interação, cada vez maior, entre o econômico e o técnico-científico representa apenas um processo peculiar de dominação, uma máscara, sob a qual se escondem os interesses da categoria que impõe o discurso. Essa conexão da técnica e do capital, sem uma consideração crítica, consolida um poder único, seguro e firme, sob o falso argumento de exercer uma função protetora na sociedade. Schelsky alerta sobre o risco do domínio da técnica:
[...] surge uma nova ameaça no mundo: o perigo de que o homem se explicite só mediante ações externas que transformam o mundo e fixe e trate tudo, aos outros homens e a si mesmo, nesta esfera objetiva da ação construtiva. Esta nova auto-alienação do homem, que lhe pode roubar a sua própria identidade e a do outro..., é o perigo de que o criador se perca na sua obra e o construtor na sua construção[18].
        Uma breve reflexão sobre a racionalidade técnica é suficiente para mostrar o abismo entre o ideal de um mundo de entendimento e harmonia e a loucura do progresso desenfreado, do aviltamento da dignidade humana, do esgotamento dos recursos naturais do planeta, dos problemas ambientais, da destruição da floresta amazônica, fruto da ganância de grandes latifundiários e do descaso dos governantes; do problema da geração de alimentos; da contaminação das águas e do ar atmosférico etc. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, reunida na PUC, em Porto Alegre, no mês de julho de 1999[19], alerta que o aproveitamento dos recursos hídricos  do planeta será um dos maiores problemas no próximo século. Todo esse processo de degradação ambiental é reversível; contudo, o país que não cuida de seu povo, também desleixa os seus recursos naturais, dificultando ainda mais a vida das novas gerações.
3.        Uma visão além do horizonte
         A visão além do horizonte é a aventura do imaginário, são os sonhos que guardamos, como o vôo da liberdade, da paz, da justiça, da abundância de vida para todos. É possível ainda sonhar! Sobre alguns problemas abertos na filosofia do direito, Arnaud nos diz: “O futuro dirá... pois, não nos é dado ir além das simples conjeturas[20]”. Contudo, nossas utopias[21] são projeções daquilo que acreditamos e não se pode recusar o apelo, a interpretação do sentido das aspirações humanas e a possibilidade de re/inventar o futuro. No meio de tantas perguntas não respondidas, precisamos encontrar vias de reflexão, uma janela aberta, onde a lucidez e o sonho espreitem o amanhã. Muitos são os ensaios acadêmicos para reorganizar a sociedade com liberdade. José Geraldo de Souza Júnior menciona um curso organizado da Universidade de Brasília, cujo nome se deve ao Prof. Lyra Filho, O Direito Achado na Rua em que
Com base na análise das experiências populares de criação do direito pretende: 1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos (...) 2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social (...). 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão do homem pelo homem[22].
      No limite da nossa esperança se desenrola um quadro de tensões e possibilidades: 
3.1 A tensão entre o presente e o futuro: Não é preciso ser messiânico ou futurólogo para perceber que a extraordinária fecundidade humana, nessa era pós-moderna, tem gerado mudanças de toda  ordem, cujas conseqüências não são inteiramente previsíveis. E a amostragem do quadro parcial traz desconforto e apreensão. No novo cenário, mesclam-se os paradoxos do desenvolvimento vertiginoso das conquistas tecnológicas com a ignorância, o analfabetismo e o atraso de grandes camadas da população mundial; convivem a abundância, o consumismo e o desperdício de alimentos com a miséria absoluta de milhões de seres humanos; fortalecem-se os privilégios de poucos e o sistema de dominação e opressão de muitos, disseminados sob várias formas.
        A pós-modernidade acentua ainda mais as duas faces da realidade: a rica, poderosa e tecnicamente desenvolvida, e a outra, a pobre, subnutrida e ignorante. Enganar-se-ão aqueles que acreditam numa transição normal, numa acomodação gradual às novas circunstâncias, sem um esforço mundial para romper o ciclo das exclusões sociais. O sonho do futuro não pode ser construído de modo discriminatório, como um gesto de esperança para uns e  de desesperança para outros. Se não se pode deixar morrer a esperança no mundo novo, essa não pode perder o contato com a realidade, sob pena de se converter num sonho impossível para toda a humanidade.
          A utopia é construída “do poder de que dispõe o homem de se desligar do imediato e do factual, a fim de inventar novos possíveis, seja em direção ao passado de uma idade de ouro, seja em direção a um futuro prospectivo[23]”. A dialética entre o sonho e as possibilidades para a sua concreção pode significar o espaço entre a vitória e o fracasso. Seria espantosamente surpreendente se uma parte da sociedade, depois de acumular notável conhecimento em todos os saberes, ao realizar o salto para o futuro, se resignasse a um sistema fechado de privilégios, isolando-se do conjunto da humanidade. Essa veleidade seria um novo tipo de alienação (o que já está acontecendo), seria o nascimento de um mundo fantasmagórico e nefasto sem os ingredientes de uma esperança compartilhada. Nesse caso, somos forçados a admitir que a esperança, sem o engajamento no real, se transforma em fantasia. São o risco de quem espera  -  as ambigüidades da esperança  -  de um lado o otimismo ingênuo e a resignação estéril e, de outro, gestos concretos que apontam para novas perspectivas.
        Segundo Lepargneur, “À dialética mais evidente que encontramos na esperança opõe-se realização e não-realização, presente e futuro, promessa e cumprimento, insatisfação experimentada e satisfação projetada[24]”. Por outro lado, parece que todos os nichos de esperança acham-se desgastados pelo tempo ou pelas incrustações ideológicas. Contudo, entre lamentar os erros do presente e a vontade de viver numa sociedade justa, é necessário ter a coragem e a lucidez de construir o sonho do futuro. A capacidade de esperar é o gesto daqueles que ainda não perderam a confiança no futuro. Quem espera são os pobres, os oprimidos e injustiçados, já que os poderosos não precisam repensar a distância entre a atualidade e o imaginário. Os filhos da esperança são hoje todos os excluídos: os sem-terra, os sem-teto, os sem-salário, os sem-justiça, os sem-direitos etc.
3.2 A humanização da Terra: Nenhuma resposta para todas as crises que nos assolam pode ser encontrada numa dimensão exterior ao problema do humanismo. Mas, ao se falar de humanismo, surgem ao mesmo tempo vários níveis de linguagem, algumas inclusive contraditórias. Desde o período renascentista e em alguns casos, mesmo antes, se fala que a solução para todos os problemas se encontra no próprio homem. Tantas são as definições que o humanismo comporta que se torna uma palavra maleável, se não a mais maleável de todas, a ponto de ser aproveitada pelas diversas teorias com significados divergentes. Se para alguns essa riqueza multiforme traduz a exaltação da dignidade humana, para muitos encobre, sob um mesmo marco, realidades diferentes, gerando uma imprecisão de sentido. Cada conceito de humanismo conduz a um tipo específico de interpretação, fala-se em humanismo renascentista, idealista, positivista, marxista, cristão, existencialista etc. Um olhar sobre as diferentes concepções do homem pode suavizar alguns aspectos que ainda se apresentam dogmáticos e tendentes a uma visão reducionista. O humanismo filosófico tradicional, com suas várias tendências, difere da episteme moderna, preconizada por  Foucault e outros, de ver o homem como um ser da natureza[25].
        O humanismo filosófico tradicional  é uma sobreposição da tradição grega sobre as outras concepções, o próprio cristianismo absorveu o  logos grego, em detrimento de sua primitiva visão do homem. Nesse sentido Bultmann conclui:
É claro que a concepção que o cristianismo primitivo tinha do homem é radicalmente oposta àquela da tradição grega: o homem não se concebe como um caso particular do ser cósmico; ele não foge à problemática de sua existência pessoal graças à noção da lei cósmica, da harmonia universal”.  “...Estamos muito longe da antropologia dualista grega com sua concepção da tensão entre o espírito e os sentidos, e a concepção do seguimento da vida que daí decorre... A essência verdadeira do homem não é o logos, a razão, o espírito. Se perguntarmos ao cristianismo primitivo onde está a essência, só uma resposta é possível: na vontade. Em todo o caso, o ser humano, a vida enquanto vida humana é sempre concebida como um ‘ser em vista de’, um esforço para um querer[26]”. 
       À primeira vista, percebe-se que a experiência humana não pode ser aprisionada dentro de moldes apriorísticos[27]; por mais relevantes que sejam os propósitos defendidos, acaba-se por enfatizar determinados aspectos em detrimento de outros, mesmo porque o homem não possui uma natureza categórica e definitiva; como ser da natureza ele é livre e em processo de autoconstrução ininterrupta. E se o homem se autoconstrói, por conseqüência não pode ser reduzido a uma perspectiva filosófica única, pois ele escapa a uma catalogação abstrata. Qualquer estudo sobre a natureza descritiva do homem esbarra na impossibilidade absoluta de capturar todas as suas  dimensões, o seu mundo subjetivo e intersubjetivo. O homem está aí, o que percebemos é a sua existencialidade, sua corporeidade.
A humanidade abriu muitos caminhos na decifração da essência do ser humano. Serviu-se das artes, da pintura nas cavernas rupestres, dos desenhos em vasos de barro. Expressou-se pelos grandes monumentos, por miniaturas de marfim e por uma gama imensa de músicas folclóricas. Utilizou a palavra através de mitos, fábulas, poemas e narrativas. Usou do pensamento através da filosofia e das cosmovisões. As religiões através dos mitos da criação, do fim do mundo e da plasmação do ser humano, oferecem as decifrações mais ousadas da natureza humana. Hoje em dia prefere-se o cinema, o universo virtual da comunicação e principalmente as ciências empíricas, hermenêuticas e holísticas. Todas elas implicitamente encerram uma antropologia, quer dizer, uma determinada compreensão do ser humano, homem e mulher[28].
      Como ser livre, o homem “está permanentemente em busca de sua auto-imagem, só que a idealização dessa imagem é recriada, apresenta-se escoimada das imperfeições, e o homem se imagina perfeito, bom e feliz[29]”.
         Ao longo da história, em todas as comunidades, onde a tirania, o despotismo do poder e a violência da ordem jurídica estatal reduziu ou extinguiu as liberdades individuais, percebeu-se um período de desvalorização da vida e de estagnação da criatividade humana. Basta citar que ainda nos ressentimos nas ciências, nas artes, na política e na economia dos longos anos de ditadura militar no Brasil. Daí decorre a necessidade de uma luta sem tréguas contra a opressão e a dominação em qualquer lugar e sob quaisquer dissimulações que se apresente. A eliminação de todas as formas de violência é o pressuposto básico do novo humanismo com o reconhecimento da unicidade exclusiva e original de cada pessoa humana. Mais, com o reconhecimento de que os direitos humanos não se esgotam nas garantias expressas na legislação vigente, existem outros direitos implícitos, subentendidos, cujos postulados, cedo ou tarde, se espera que sejam exteriorizados/reconhecidos pelo ordenamento jurídico. Bobbio afirma que a comunidade internacional, além de assegurar o cumprimento da Declaração Universal dos Direitos do Homem, deve
[...] aperfeiçoar continuamente o conteúdo da Declaração, articulando-o, especificando-o, atualizando-o, de modo a não deixá-lo cristalizar-se e enrijecer-se em fórmulas tanto mais solenes quanto mais vazias[30].
        A globalização é uma violência contra a vida, gera, nos países periféricos, desemprego em escala crescente, fome e miséria. Nesse caso, a globalização assemelha-se a uma forma de canibalismo  -  o grande e forte alimenta-se do pequeno e  fraco. A luta do novo humanismo contra a exploração e a opressão passa pela descentralização da sociedade civil, pela desregulação estatal e pelo crescimento gradual das ordenações jurídicas dos diferentes agrupamentos sociais dentro do Estado. O estatismo jurídico é um instrumento de controle e dominação social, provoca, inclusive, o descrédito do poder público. A potestas normandi não  reside  só no Estado. Cria-se um contra-senso absurdo, o Estado reconhece o direito dos grupos sociais de se organizarem com normas próprias, mas ao mesmo tempo, só confere o caráter jurídico às suas próprias normas. Essa interferência do Estado, identificando-se com a lei e interferindo abusivamente na vida dos cidadãos, decorre do fato de que o Estado é um ente mítico, todo-poderoso que subjuga a soberania popular aos seus postulados.
        O Estado arranca o homem de seu próprio contexto histórico, das normas de vida grupal, estabelecidas por uma convivência pacífica, harmoniosa e justa e os joga num espaço normativo, criado para legitimar a sua existência, como entidade fiscalizadora da vida social. Não se pode esquecer que os núcleos de desorganização social, violência e miséria existentes dentro da sociedade são criações do Estado, à medida que favorece uma excessiva concentração de riquezas e descuida do emprego, da saúde, da educação e da segurança públicas. Não se taxa o capital especulativo, não se fiscaliza severamente a evasão fiscal e se sobretaxa as pequenas empresas e o assalariado, a fim de manter os gastos da máquina pública, sempre deficitária. Nunca sobra para investir em projetos sociais, para erradicar a pobreza, restringe-se a atividade estatal a uma interferência degradante baseada no mero assistencialismo, na distribuição de alimentos às populações carentes. Se o Estado não interferisse, demasiadamente, na vida das pessoas, não criasse os bolsões de miséria e violência através de uma política econômica clientelista, a sociedade se autoregularia, estabelecendo as bases para uma coexistência tranqüila. Postula-se a existência do Estado com suas normas e de uma produção normativa paralela à do Estado, com força coercitiva e reconhecimento da pluridimensionalidade do direito, todas essas regulações vistas como parte de uma mesma ordem jurídica. Como preconiza Wolkmer, o pluralismo jurídico representa uma chave para a implantação do direito justo:
Diante da imperiosidade de se delinear os meios de superação do monismo jurídico materializado no estado e de estabelecer o projeto de uma ordenação descentralizada e espontânea que nasça da própria Sociedade, fundada na pluralidade de necessidades básicas e no consenso das diferenças. Cabe visualizar duas estratégias essenciais, direcionadas para a produção legal alternativa: a) Práticas ou mecanismos legais institucionais de produção alternativa existentes dentro do Direito positivo oficial do Estado; b) Práticas ou mecanismos legais não-institucionalizados de produção alternativa fora da órbita do Direito Estatal positivo[31].
      Mesmo o Estado não reconhecendo a sua equivalência e, arbitrariamente, submetendo à sua ordem jurídica o pluralismo de ordenações jurídicas,  existem, nos diferentes grupos sociais organizados, normas espontâneas de regulação da vida em comunidade que se auto-afirmam tão autênticas quanto as  emanadas da chancela estatal.
          A reafirmação da dimensão humana  -  o humanismo dentro de um novo paradigma - implica na não-rotulação do homem sob quaisquer premissas filosóficas, reconhecendo que a sua natureza essencial extrapola os moldes pré-estabelecidos. Não se trata de “um vago humanismo[32]”, pois todos os mapas são parciais ou temporários e não refletem, com precisão, as suas diferentes dimensões. Mesmo porque
A paixão, a experiência amarga, os erros da geração combatente à qual pertenço podem esclarecer um pouco os caminhos. Sob essa condição única convertida em imperativo categórico: jamais renunciar a defender o homem contra os sistemas que planejam a aniquilação do indivíduo.[33].
         O homem é um ser livre, aberto para novas experiências, original e relacional, que aspira desenvolver as suas potencialidades numa atmosfera de tolerância, solidariedade e justiça eqüitativa. Segundo Bobbio:
O único critério razoável é o que deriva da idéia mesma de tolerância, e pode ser formulado assim: a tolerância deve ser estendida a todos, salvo àqueles que negam o princípio de tolerância, ou, mais brevemente, todos devem ser tolerados, salvo os intolerantes[34].
          As exclusões sociais constituem-se no atestado mais que evidente do fracasso do Estado e da sociedade como um todo. Não há adjetivação possível para enquadrar a barbárie a que está submetida grande parte da população, dos chamados países emergentes. Esse é o legado de horror transmitido às gerações futuras. Urge, portanto, modificar as atuais condições sociais, transformar as estruturas de poder excessivamente centralizadas, formalistas e burocratizadas, para que  o Brasil seja um país generoso, justo e equânime. Porque a única visão além do horizonte é um caminho sem paixões ou exclusivismos, é a humanização contínua, como um fim em si mesmo.
         Apesar de todos os problemas, amadurecemos, paradoxalmente, através da continuidade da esperança em um mundo novo, pluralista, antidogmático e democrático. Na esperança de um novo humanismo, acreditamos que
ainda amanhã haverá esperança, se é verdade que o homem não pode apagar completamente a questão do sentido, aquilo que temos sob os olhos não mostrando sentido satisfatório. O mundo atual é um desafio à esperança, mas qualquer esperança real constitui também um desafio para um mundo intoxicado pelo racionalismo da tecnocracia e pela manipulação dos consumidores... Esperança ainda não é resposta definitiva, mas é encaminhamento de uma possível resposta: isso, porém, não será possível se for cancelada a pergunta sobre o sentido[35].
      Em todos os contextos históricos, emerge sempre a esperança do melhor, do ainda não, algo que espreita continuamente no horizonte da história e se introjeta no ser humano, como um caminho para a felicidade. A esperança é perpassada de obstáculos, coragem e perseverança.
poderão perceber, com olhar límpido, que o Direito pode e deve ser fundado, pensado, desenvolvido e feito realidade como regra de ordenação social, de um modo muito diferente do que até agora se praticou no ocidente, com grande proveito para o ser humano. É deles de quem poderá brotar, principalmente, uma atitude crítica do Direito que objetamos e uma vontade para depurá-lo, ou, ainda, para substituí-lo, em benefício de toda a sociedade[36].    
          Terá a globalização econômica e normativa que se avizinha um espaço para alcançar os pobres? Será que ainda é possível esperar que o lobo e o cordeiro se unam para salvar a floresta? Eduardo Monreal expressa o desejo de que as novas gerações


[1] RECTOR, Mônica; NEIVA, Eduardo. Comunicação na era pós-moderna. Petrópolis: Vozes, 1997
       p. 129.
[2] Id. p. 184.
[3] Cfe. Estatísticas  da Unicef, no Brasil, ano de 1999, a cada 1000 crianças que nascem, 34,8 morrem antes de completar o primeiro ano de vida.
[4] Analisando as transformações decorrentes da nova ordem econômica, o Professor José Eduardo Faria menciona as principais tendências no campo jurídico, tais como a ‘reprivatização’, a desregulamentação, deslegalização e desconstitucionalização, substituindo a tutela governamental pela expansão das relações contratuais, pela livre negociação; a redução do grau de imperatividade, coercibilidade do ordenamento jurídico, com flexibilização dos padrões jurídicos; o enfraquecimento do direito do trabalho, esvaziado pela livre negociação, contratos de locação de serviços, subcontratação e novas formas, mais maleáveis de relações trabalhistas, disfigurando progressivamente o direito do trabalho; o enfraquecimento dos direitos sociais e humanos; aumento do número dos excluídos do processo de geração de riquezas que “se tornam sem-direitos no plano jurídico, sem serem dispensados das obrigações legais; formação de guetos, com sistemas normativos próprios. In: Para onde vai o direito? (O Estado de São Paulo, NetEstado, 15.08.1997).
[5] Sobre os excluídos,  Streck afirma que, em estatística recente, o “apartheid Social” atinge 59% da população do Brasil, apresentando uma terrível pesquisa: 86% não vão além da 8a. série do 1o. grau; 19% vivem de “bicos”, 10% são assalariados, mas sem registros trabalhistas; a elite brasileira corresponde a 8% da população brasileira; 85% da elite é integrada por brancos, tornando óbvio que o grande contingente de excluídos é integrado por negros, mulatos e mestiços.  (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 26-27).
[6] Constituição Federal, artº 5o., LV.
[7] Ib., artº 5o., LIV.
[8] Ib., artº 5o. XXXV.
[9] José Eduardo Faria, Para onde vai o direito? (O Estado de São Paulo, NetEstado, 15-08-1997, p. 2).
[10] O próprio poder executivo se preocupa com a reforma constitucional, dando plenos poderes aos órgãos sindicais para estabelecerem acordos trabalhistas, sem a necessidade de intermediação da Justiça do Trabalho. Essa flexibilização das relações trabalhistas faz com que a negociação prevaleça sobre a legislação, “... um modelo em que o negociado prevaleça sobre o legislado.” Acordo Trabalhista vai dispensar juiz. (Correio do Povo, Empresa Jornalística Caldas Júnior, 06.08.99, p. 11).
[11] Cfe. TVE, Programa Rede Brasil Revista, do dia 15.07.1999, às 22h10min.
[12] FARIA, José Eduardo. Para onde caminha o direito? (O Estado de São Paulo, NetEstado, 15-8-1977), p. 3.
[13] ARNAUD, André-Jean & CAPPELLER, Wanda. A força do Estado em face da globalização. in Sociologia e Direito: Textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira, 1999, p. 237.
[14]id., p. 243.
[15] Id., p.233.
[16] Cf. TVE, Rede Brasil Revista, do dia 15-07-1999, às 22h10min.
[17]Eduardo Lima de Arruda Jr., O Moderno e o Pós-Moderno no Direito: Reflexões Sobre um Neocolonialismo Jurisdicista. (vide nota 13), p. 249.
[18] Schelsky, Einsamkeit und Freiheit, Hamburgo, p. 229, apud HABERMAS, Jürgen.Técnicas e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 1968,  p. 147.
[19] TVE, Rede Brasil Revista, às 22h10 min., 15.7.1999.
[20] ARNAUD, André-Jean. O direito traído pela filosofia. Porto Alegre: Fabris, 1991 p. 251.
[21] O termo  “utopia” é uma invenção de Thomas More, em 1516, com a narrativa de uma ilha paradisíaca, onde todos viviam felizes. O vocábulo vem da contração de “oú” com “topos”  (lugar), nenhum lugar ou, o contra-senso de lugar feliz e nenhum lugar.
[22] José Geraldo de Souza Júnior, Movimentos Sociais -  Emergência de Novos Sujeitos: O Sujeito Coletivo de Direito, (vide nota 13), p. 263.
[23] Furter, Utopia e marxismo, apud Ernest Bloch. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro,  p. 11.
[24] LEPARGNEUR, Humbert. Esperança e escatologia. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 262.
[25] Cfe. Rousseau,  o homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe. (vide Discours sur l’origine de l’inégalité parmi les hommes, Garnier, s/d., p. 36).
[26] R. Bultmann, apud RAD, von G. Teologia do Antigo Testamento. V. 2, São Paulo: ASTE, 1974, p. 461.
[27] PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Chistian de Paul. Problemas Bioéticos. 3ª ed., São Paulo: Loyola,  p. 35, 36, 37 e 38; Habermas, 1989,  p. 236.
[28] BOFF, Leonardo. Saber Cuidar. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 36.
[29] SILVEIRA, José de Deus Luongo da. Noções preliminares de filosofia do direito. Porto Alegre: Fabris, 1988,  p. 34.
[30] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1992, p. 34.
[31] WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa Omega, 1994, p. 259-260.
[32] Villey, apud Arnaud,  1991,  p. 24.
[33]  Serge, apud  Candido. A crise dos paradigmas modernos. ( http:://www..hotnet.net/- candido/paradigmas.html), p. 1
[34] Bobbio,  (vide nota 30), p. 213.
[35] Lepargneur, (vide nota 24) p. 59-60.
[36] MONREAL, Eduardo Novoa. O direito como obstáculo à transformação social. Porto Alegre: Fabris, 1988,   p. 189.