quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

TRAVESSIAS CONCEITUAIS

As rupturas axiológicas da globalização e o mundo da exclusão das grandes concentrações urbanas latino-americanas. Como recontextualizar o evangelho nesses novos espaços?


 José de Deus Luongo da Silveira [1]
 
1. As rupturas axiológicas da globalização e o mundo da exclusão das grandes concentrações urbanas latino-americanas

         A partir de 1980, os planos econômicos, jurídicos, sociais e religiosos passam por grande transformação e compatibilização aos novos paradigmas da globalização. Featherstone refere que o vocábulo globalização, originariamente, foi criado para designar as transformações no desenvolvimento do campo da comunicação e da cultura[2]. O Brasil, assim como os países da América Latina, de modo especial, os Países Membros do Mercosul, entraram um pouco tarde nesse processo, inclusive queimando etapas, nem mesmo chegaram à plena sociedade industrial e já estão vivendo os problemas da sociedade pós-industrial. Segundo Streck: “No Brasil, a modernidade é tardia e arcaica. O que houve (há) é um simulacro de modernidade[3]”.

            A liberação da economia em paises de grande explosão social e política clientelista tem como resultado a quebra de empresas nacionais e o aumento das taxas de desemprego. O modelo neoliberal abre caminhos com a globalização da economia, acentuando as rupturas no campo sócio-religioso, a confusão axiológica, a interdependência entre os Estados e o vazio existencial do homem moderno. A globalização apresenta-se como se guardasse uma unidade interna, formando um corpus a sua estrutura organizacional. Contudo, essa interação simbólica não se realiza, uma vez que a globalização é carregada de tensões multiformes. Segundo alguns analistas,
Apesar da tecnologia, não nos transformamos num povo só, o que há são ‘diálogos heterogêneos’ (APPADURAI). A globalização é ‘mais uma organização de diversidades do que uma réplica de uniformidade’ (HANNERS). A cultura oscila entre forças de permanência e de mudança, de tradição e de inovação. O modo como os indivíduos organizam essas tensões culturais é fator importante para a estabilidade social[4].
            Os processos de internacionalização, globalização e unificação dos mercados capitalistas do planeta, toda essa despadronização da vida, geram várias mudanças também no campo religioso. Com a transnacionalização da economia e a desenfreada expansão dos mercados de capital, destaca-se o global, o coletivo, em detrimento do local, do particular e do individual. Nesse contexto de transculturação, a religião funciona, na maioria das vezes, como uma das últimas trincheiras de resistência ao marco da globalização. Mesmo porque, as mudanças estruturais sempre encontraram, na religião, um fator de resistência à desarticulação das tradições estabelecidas. Esse conflito dialético entre a velha e a nova ordem tem gerado reações opostas no campo religioso: de um lado, articulam-se os movimentos fundamentalistas (cristãos, islâmicos, etc.), com a rigorosa observância da doutrina e avessos ao pluralismo de idéias; de outro, surgem os movimentos religiosos difusos (crentes sem-religião), combinando sincreticamente elementos místico-mágicos com crenças tradicionais. De qualquer forma, ambas as reações se apresentam intimamente vinculadas à experiência comunitária e ao ambiente territorial, o que evidencia a reafirmação da identidade cultural local, em contraposição aos postulados da globalização.
           Sob o ponto de vista religioso, a globalização carrega consigo duas tendências irreconciliáveis: De um lado, a mundialização das relações econômico-culturais, com a mídia eletrônica rompendo e ultrapassando as fronteiras nacionais e revolucionando o mundo da cultura. Essa cultura de massa difunde-se por todos os povos da terra e adquire um caráter singular e insólito de transculturação; de outro, a sensação de estrangulamento do referencial próprio dos indivíduos e das comunidades locais, a conflitualidade da nova ordem com os valores tradicionais, os impelem a um equilíbrio regenerador de volta ao mundo interior, ao renascimento da espiritualidade. A dialética entre a identidade cultural dos indivíduos, das sociedades locais e a particularização do universal geram uma ruptura, um espaço asfixiante que precisa ser superado, e um dos caminhos encontrados nos últimos tempos tem sido a luminosidade da experiência do sagrado que, às vezes, desemboca no radicalismo religioso de grupos sectários.
A diferencia de la tesis modernista que postula que la globalización sería un proceso exclusivamente positivo que posibilitaría a las religiones mundiales un acercamiento en torno a una postura espiritual y ética concordante en vistas a enfrentar problemas planetarios emergentes y dramáticos, hay que concebir el proceso de globalización en forma dialéctica y conflictiva. La globalización además desencadena muchas veces una reacción religiosa fundamentalista en la defensa de lo local. Pensamos, por ejemplo en el Islam[5].
         Ninguém desconhece que a antropologia urbana apresenta características próprias, um modo de vida que se desassocia cada vez mais da realidade rural. O fenômeno urbano tem merecido, nos últimos tempos, a análise de teólogos, antropólogos, sociólogos, psicólogos, etc. Alguns autores vêem na vida urbana uma atmosfera saturada de violência, solidão em grupo, neurose e alienação.
[...] toda a atmosfera [das análises da cidade] é fortemente reminiscente do mito da expulsão do homem do paraíso e do começo da vida social e histórica. O homem não pode voltar a uma mítica vida rural e deve suportar as durezas da vida urbana ‘no suor do seu rosto’, mas o desejo inconsciente de retornar a um edênico útero rural emerge constantemente[6].

            Contudo, esse paraíso edênico se desvanece, em parte, quando percebemos que a vida no campo não é mais tão tranqüila assim. A ordem moral da vida camponesa está se modificando rapidamente, uma vez que o rádio e a televisão estão carregando a cultura urbana ao homem do campo. Parece pertinente, uma visão menos utópica, nem uma posição antiurbana, nem a mítica da vida rural. Apesar das peculiaridades próprias entre a realidade rural e urbana, é no modo de vida desses grupos sociais que vão sendo demarcados cada um dos microespaços simbólicos. Uma leitura atenta da atmosfera dos grandes centros urbanos é suficiente para demonstrar o desenvolvimento dos seguintes processos sociais:

a) A maior parte das cidades latino-americanas sofreu um processo de inchaço crônico, de crescimento desordenado nas últimas décadas, sem um adequado planejamento urbano, produzindo espaços congestionados, onde há falta de mercado de trabalho, saneamento básico, segurança, etc., e onde a maioria da população não se constitui em mão-de-obra qualificada, como conseqüência, cresce a taxa de desemprego, os bolsões de miséria e o proporcional aumento dos guetos, com estruturas próprias. A grande maioria da população é alijada do sistema e forçada a encontrar caminhos de sobrevivência na economia informal, quando não na clandestinidade[7]. A cidade fica dividida em dois grupos de cidadãos: os subintegrados ou subcidadãos e os sobreintegrados ou sobrecidãos[8]. Nas cidades, caminha-se por um mundo seleto de privilegiados que observam do alto de suas mansões, o formigueiro da vida, tentando se reorganizar em situação precária e entregue à sua própria sorte, e onde a vida teima em prosseguir seu curso.

b) O mundo da exclusão nas grandes concentrações urbanas cria as suas próprias regras com valores e contradições de sua realidade, onde a luta pela sobrevivência faz com que a vida humana, em alguns casos, tenha pouca valia. Grupos rivais dividem seus territórios de influência e tráfico de drogas ilícitas, determinando as regras de convivência e realizando, muitas vezes, a assistência social que o Estado não faz. O processo de marginalização dos excluídos atira-os a essa estrutura gritantemente injusta e violenta, como decorrência do atual modelo econômico-social. Nesse contexto, o chamado Estado-bandido assume o controle das favelas, onde a densidade demográfica e as condições de vida se tornam caóticas, enquanto o Estado-bom, oficial, se vê forçado, a mostrar o dedo-duro-da-lei, aumentando a esfera de ação da norma penal[9], com penas mais gravosas, para coibir a conduta anti-social.

       A falta de mercado de trabalho e o conseqüente empobrecimento da população urbana desenvolvem vários processos sociais. Uma das saídas encontradas tem sido a marginalização que, no Brasil e em algumas das grandes cidades da América Latina, assume proporções catastróficas, com a formação de grupos organizados que, aliados ao narcotráfico, desafiam a ordem institucionalizada. Outra resposta para essa problemática tem sido a efervescência religiosa. A maioria dos novos movimentos religiosos nasce e se desenvolve na periferia dos grandes centros urbanos. É no espaço urbano que se verifica a explosão dos movimentos religiosos livres, de todos os matizes: umbanda, candomblé, pentecostais, neopentecostais, orientais, exotéricos, movimentos de auto-ajuda, etc. Nos bairros e vilas que circundam os centros urbanos aparece a solução apaziguadora da miséria e do profundo desencanto com o modelo econômico-social. Centenas de movimentos religiosos respondem às necessidades individuais e existenciais, a maioria com estruturas comunitário-pastorais auto-sustentadas pelos trabalhadores assalariados, desempregados e donas-de-casa.
       Outra questão a considerar junto com as conseqüências da globalização é a ilogicidade dos centros urbanos. As cidades exercem um grande fascínio sobre o homem do campo, atraem gente das áreas rurais, acenando com um mundo novo de oportunidades.
[...] melhor qualidade de vida, melhores oportunidades de emprego, de educação e saúde [...] com promessa de uma vida melhor, as cidades funcionam como uma [...] rica pluriformidade, vibrante, excitante, um caleidoscópio de cores, sons e gostos[10].
             Esses atrativos arrancam o homem do campo, sobretudo os minifundiários, que já não mais conseguem ser sustentados por aquilo que localmente produzem em seus sítios, em razão da falta de políticas agrícolas consistentes que fixem o homem na terra. Mesmo porque, o FMI, quando financiam a dívida dos países pobres, monitora suas economias. Essas ingerências atingem também a produção agrícola de subsistência, estabelecendo o imperativo da monocultura, para atender ao mercado externo e angariar divisas. Nos países em desenvolvimento, aproximadamente trinta milhões de pessoas, a cada ano, migram do campo para as cidades, o que equivale à população inteira de alguns países, como a Espanha e o Quênia[11]. Como as cidades latino-americanas não têm infra-estruturas para lidarem com essa massa crítica, quase todos vão engrossar as favelas da periferia, ou como são chamadas em diferentes países latino-americanos de língua espanhola, “callampas, conventillos, barriados pobres o chabolas”. Muitos desses casebres ficam localizados em terrenos perigosos, de alto risco e sem rede de esgoto. Nesse contexto, gritantemente injusto, vivem os excluídos, sem emprego e sem esperança.
não dá pra comparar a pobreza do nosso século [na América Latina] com nenhuma outra. Não é, como já foi alguma vez, o resultado natural da escassez e sim de um conjunto de prioridades impostas pelos ricos ao resto do mundo[12].

               A preocupação sobre o futuro das cidades tem levado estudiosos, inclusive das Nações Unidas, a estabelecerem projeções sobre o acelerado ritmo de urbanização e os problemas decorrentes desse processo. Vejamos:
Uma primeira indagação a ser feita é: o século XXI significa o fim das cidades ou o século das cidades? Segundo projeção da ONU, em 2025 teremos 61% da população mundial vivendo em cidades. Em 1975 este índice era de 37%. Das 21 maiores metrópoles do mundo 14 estão em países subdesenvolvidos. Esse percentual deverá aumentar 89% em 2025. Ou seja, as projeções indicam uma multiplicação das grandes cidades nas regiões pobres, num cenário radicalmente diferente de 50 anos atrás quando apenas 100 aglomerações urbanas tinham mais de 1 milhão de habitantes, e a maioria delas localizava-se em países ricos. Ainda segundo a ONU, em 2025 haverá 527 grandes cidades sendo 2/3 delas localizadas nos países menos desenvolvidos[13].

           A urbanização selvagem da América Latina, com bolsões de miséria e violência traduz o desequilíbrio social da nossa geografia urbana. Ao se chegar nesses grandes centos urbanos, quer por transporte rodoviário ou aéreo, divisa-se quilômetros e quilômetros de guetos e favelas miseráveis, sem-esgoto, sem-água tratada e com milhares de pessoas vivendo em condições subumanas. As grandes cidades latino-americanas são organismos doentes[14], atacadas pelo vírus da poluição, da violência e da miséria. Na chegada a esses centros urbanos, por transporte rodoviário, percebe-se invariavelmente que, em cada casebre, existe uma antena de televisão, formando um intrincado labirinto de hastes metálicas. Esses terminais receptores fazem a ligação entre o imaginário mundo glamouroso  e a facticidade do seu cotidiano, entre o sonho e a realidade. Diante da tevê, os excluídos da sociedade de consumo vêem a propaganda de produtos sedutores, aos quais jamais terão acesso. Contudo, eles anestesiam a dura realidade com programas televisados de duvidoso nível cultural e as mensagens das igrejas eletrônicas. Não há saída, a grande massa de miseráveis dos centros urbanos latino-americanos mergulha no conformismo estéril, ou ingressa na criminalidade, ou então, se torna crente. Nesse contexto de aviltamento da dignidade humana, a religião funciona como o grande farol que ilumina e apazigua as consciências. Não é sem motivos que a periferia dos centros urbanos latino-americanos tornou-se o celeiro dos novos movimentos religiosos.

       Como o fenômeno dos novos movimentos religiosos é preponderantemente urbano, existe uma estreita relação entre esses e a geografia das periferias urbanas latino-americanos. Parece que a falta de horizontes econômico-sociais dos assalariados e desempregados é o elemento mágico que desencadeia o processo da conversão. Mesmo porque o povo das vilas e bairros pobres não possui uma estratificação social definida, pelo contrário, há uma intensa mobilidade dos vários segmentos sociais, acarretada pela desorganização e pela falta de coerência interna. Já nas áreas centrais das cidades, as concepções de vida são mais definidas e estáveis.

2.  Como recontextualizar o evangelho nesses novos espaços?

No exame das travessias conceituais parte-se das transferências e deslocamentos do marco cultural europeu. Parte-se da premissa de que a identidade Latino-Americana apresenta-se ainda hoje como a dialética entre o não-ser e o ser-outro. São vários séculos de dominação etnocêntrica. Herdou-se dos conquistadores a língua, os costumes, as instituições e a religião. Os navegantes-descobridores-conquistadores trouxeram para o Novo Continente a cruz e a espada, a cruz justificava a espada e a espada protegia a cruz. Essa aliança entre a cruz e a espada foi responsável pela exploração, dominação e alienação. 
Os reflexos dessa evangelização forçada ainda permanecem na América Latina. Desse contexto, emerge a idéia de que não há uma identidade cultural latino-americana, mas o resultado de vários povos e diferentes culturas. Adotaram-se, a ferro e fogo, os valores culturais e religiosos dos conquistadores. E cinco séculos não foram suficientes para exorcizar o colonialismo, vive-se na América Latina a oposição entre dois abismos: “o não ser e o ser outro”.
Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é.  A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética entre o não ser e o ser outro[15].                                         
Parece que só haverá identidade cultural quando a América Latina romper com todos os processo de dependência e subordinação à Europa, e agora, aos novos conquistadores, o poderio econômico e tecnológico Norte Americano. É a América subjugando a América. Só que desta vez, dificilmente aparecem exércitos armados. A dominação é sutil e engenhosa, concentra-se na exploração do capital especulativo internacional, que traz fome, miséria e exclusão social e faz um Continente rico de um povo pobre.
O paralelo com os Estados Unidos é inevitável. Se todos os países do mundo têm, hoje, de se medir com a "América", de se posicionar em face do Império Americano, e se os outros países das Américas o têm que fazer de modo ainda mais direto , o caso do Brasil apresenta a agravante de ser um espelhamento mais evidente e um alheamento mais radical[16].

        Por enquanto, a única identidade que unifica a América Latina é a identidade oprimida, com um forte grau de servidão aos novos colonizadores, que impõem o discurso da globalização. É um continente crioulo ou mestiço, onde a idéia do indigenismo[17] e da negritude[18] faz com que seja tratado como inferior.
A pergunta permanece, como recontextualizar o evangelho nesses novos espaços?
A teologia da libertação representou um estudo sistemático da realidade latino-americana, por meio das comunidades de base, desde os documentos de Puebla e Medellín. O movimento que se articulou na América Latina, como um novo modo de fazer teologia, enfrenta óbices, atualmente, da própria estrutura eclesiástica. Contudo, essa reflexão crítica de que a salvação passa pelas libertações históricas, que a construção de uma sociedade justa e solidária está no caminho da grande libertação do homem, constitui-se numa salutar releitura dos textos bíblicos.

Com o abandono das comunidades de base, a população da periferia dos centros urbanos latino-americanos deixou de fazer uma reflexão crítica entre o Evangelho e a praxe histórico-social, como instrumento para a construção de uma sociedade justa e fraterna.  Abandonou-se algo muito importante para a formação de uma consciência crítica nessas comunidades, ou seja, a relação dialética entre a leitura da realidade, com a percepção da miséria, analfabetismo, enfermidades e injustiças em que se encontra mergulhada uma grande camada da população que mora na periferia dos centros urbanos e o sonho ético-utópico de vida em abundância.
O novo fenômeno religioso, que cresce no espaço urbano latino-americano, não parte da análise do contexto histórico-social, descarta as interações entre o homem, o seu meio e a sua história, pretende exclusivamente conduzir a uma experiência direta com o divino, priorizando a individualidade. É um processo religioso de verticalização, por isso gera um estado de alienação, de falta de consciência dos problemas políticos e sociais e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, tem sido uma resposta para muitas pessoas na procura de equilíbrio e de regeneração de vida.  É o avanço de uma religiosidade individualista, emocionalista, pietista,  e descompromissada com a história de sofrimento do povo deste continente.
Nesse caso, somos forçados a admitir que a esperança, sem o engajamento no real, se transforma em fantasia. São o risco de quem espera  –  as ambigüidades da esperança  –  de um lado o otimismo ingênuo e a resignação estéril e, de outro, gestos concretos que apontam para novas perspectivas.
     De outra parte, parece que todos os nichos de esperança se acham desgastados pelo tempo ou pelas incrustações ideológicas. Contudo, a capacidade de esperar é o gesto daqueles que ainda não perderam a confiança no futuro. Quem espera são os pobres, os oprimidos e injustiçados da América Latina. Os filhos da esperança são hoje todos os excluídos: os sem-terra, os sem-teto, os sem-salário, os sem-justiça, os sem-direitos, etc. Quem espera pelas libertações históricas, que antecedem o Reino são marginalizados, já que os poderosos não precisam repensar a distância entre a atualidade e o imaginário. Os filhos da esperança são hoje todos os excluídos. Esse excluído, não se trata de uma terceira pessoa, quase uma espécie de pessoa virtual, quando ele caminha na esquina da nossa casa ou em nossa calçada. Convém que se reflita sobre o grito dos pobres, esse grito que muitas vezes é silencioso, porque não há mais voz e, nesse caso, cala mais na consciência dos homens e mulheres que ainda não perderam a lucidez e a capacidade de se indignar. Parece que a análise do fenômeno religioso no espaço urbano latino-americano, sem uma ampla contextualização, torna-se vazio de sentido, porque não está encarnado na realidade da vida. Não tem sentido examinar a religiosidade de autoconsumo de alguns grupos privilegiados, mormente situados no centro das cidades, em templos suntuosos e liturgias apenas de atos exteriorizantes, que não possuem uma consciência e compromissos pessoais com a Palavra que liberta. Esse tipo de religiosidade não parte de uma Igreja viva, profética, que se repensa frente à realidade atual e que quer ser sinal do Reino.
  Essa parece ser a nova diáspora, sair dos guetos tradicionais da cultura ocidental e re/inventar novos corredores de pensamento que satisfaçam os questionamentos latino-americanos. Nesse contexto, muitas são as perguntas não-respondidas:     
·         Será que a vocação latino-americana é de ser ponte entre as culturas (indígena-européia-africana) e, nisso, reside a sua identidade cultural?
·         Na América Latina, caminha-se para o mundo da exclusão ou se haverá de construir um horizonte da esperança, onde não haja tanta concentração de renda e tantos miseráveis?
·         Terá a globalização econômica um espaço para alcançar os pobres da América Latina? Será que ainda se deve esperar que o lobo e o cordeiro se unam para salvar a floresta?
·         Como recontextualizar o Evangelho nestes espaços se os atuais movimentos religiosos, de acordo com a CNBB, se caracterizam por tendências contraditórias: entre o sectarismo e o individualismo?
  • Como recontextualizar o Evangelho na América Latina se nos apresentamos divididos, presos aos nossos guetos religiosos, se o diálogo entre as religiões cristãs ainda enfrenta dificuldades – por motivos doutrinários não somos capazes de partilhar o Pão na mesma Mesa e celebrar juntos o Sacramento da Unidade?
  • Como recontextualizar o Evangelho se o homem moderno quer respostas para o seu sonho ético-utópico de vida em abundância, que abranja a facticidade (uma sociedade justa e solidária) e a transcendência (o Reino que virá)?
  • Do ponto de vista crítico-reflexivo é impossível negar que a recontextualização do Evangelho na América Latina implica numa mudança de vértice da nossa prática pastoral. Ainda dividimos e sobrepomos os escassos recursos para a Missão numa reafirmação das nossas estruturas denominacionais.
·         A pergunta permanece: como recontextualizar o evangelho nesses novos espaços?
 



[1] Cônego da Catedral Anglicana de Santa Maria,RS e professor da UNIFRA.
[2] Apud RECTOR, Mônica; NEIVA, Eduardo. Comunicação na Era Pós-Moderna. Petrópolis: Vozes, 1997,  p. 85.
[3] STRECK. Lenio Luís. Hermenêutica Jurídica (e)m Crise. Porto Alegre: Ed  Livraria dos Advogados, 1999, p. 23.
[4] Apud RECTOR, Mônica; NEIVA, Eduardo. Comunicação na Era Pós-Moderna. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 13.
[5] PARKER, Cristián. El Catolicismo popular urbano y la globalización. Forum  (Universidad Académica de Humanismo Cristiano, Chile), in: Newsletter de la Asociación de Cientistas Sociales de la Religión en el MERCOSUR, 4/8/1997. Disponível em:  <http://www.naya.org.ar/religion/news 04.htm>. Acesso em: 30 ago. 2003.
[6] OLIVEN, Ruben. O Metabolismo Social da Cidade. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1974, p. 22.
[7] SILVEIRA, José de Deus Luongo da. As Várias Faces do Direito: Uma crítica ao discurso jurídico tradicional. Londrina: UEL, 2001, p. 47.
[8] NEVES, Marcelo. Teoria do Direito na Modernidade Tardia. In: ARGUELL, Kate (org.). Direito e Democracia. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996,  p.110.
[9] FARIA, José Eduardo. Jornal O Estado de São Paulo, NetEstado. São Paulo: 7 set 2002, p. 1-2.
[10]GREEN, Laurie. O Impacto da Globalização: Teologia Urbana. Londres: Universidade de Cambridge, 1994, Trad. livre de Dom Sumio Takatsu. Porto Alegre: Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, p. 12-13.  s/d. Mimeografado.
[11] Ib.
[12]BERGER, John. Cada vez que dicimos adiós. Buenos Aires: Ediciones La Flor, 1997, p. 278-79.
[13]GOHN, Maria da Glória. GMDEC/FE/UNICAMP. O Futuro das Cidades. Disponível em:
 <http://www.lite.fae.unicap.br/revista/art03.htm>. Acesso em: 30 ago 2003.
[14] MINC, Carlos. O organismo está doente. In: Ecologia e Cidadania. São Paulo: Editora Moderna, 1996, p. 3 e ss.
[15] GOMES, Paulo Emilio Salles. Poemas Avulsos, s/e, 1973, p. 1.
[16] VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 14.
[17] O indigenismo ainda é considerado como uma forma de mestiçagem, de mescla cultural, de marginalização.
[18] A negritude se transformou num movimento cultural de resgate da cidadania do negro.
 

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