quarta-feira, 6 de junho de 2012

Por que clamar em favor da Igreja?

Rev. Luiz Caetano Grecco Teixeira

Desde o Domingo da Trindade, a Paróquia São Paulo Apóstolo começou uma campanha interna de clamor em favor da Igreja de Cristo: por toda a Igreja e particularmente pela Igreja Episcopal Anglicana do Brasil e a Comunhão Anglicana. Por que a comunidade decidiu isso? Uma reflexão no Pentecostes sobre o estado da Igreja no mundo e, particularmente no Brasil, levou-nos reconhecer a necessidade de – mais que uma intercessão – iniciarmos um clamor.

CLAMAR é o ato de manifestar diante de Deus a nossa indignação e a nosso completo desacordo com a realidade que vemos! e é manifestação de compromisso em OUVIR o SENHOR e OBEDECER À SUA VONTADE! Para compreender o conceito de clamor, sugiro meu artigo no blogue da Paróquia São Paulo Apóstolo, “Clamor!”.

É momento de deixarmos os ufanismos, as ilusões e reconhecer que a Igreja Cristã no ocidente está perdendo o senso de identidade e de missão concreta, como um barco sem rumo claro… a cada tempo surgem e desaparecem modismos teológicos e ideológicos; a tendência da Igreja é navegar (surfar) na onda do momento. Em meio às grandes negociatas da venda de bênçãos, da tentação do sucesso rápido e da nossa incapacidade de mudar nossos paradigmas, a Igreja Cristã Ocidental está sofrendo de uma gravíssima perda de identidade e de sentido de Missão realmente obediente ao mandato do Senhor. 
Limitando-me ao Brasil e à Igreja onde vivo minha fé em comunidade (congregação e denominação) tenho refletido sobre o atual estado dessa Igreja e partilhado isso com a comunidade aos meus cuidados pastorais, com companheiros e companheiras de ministério e lideranças em todo o Brasil. Surpreende-me o fato que, ao partilhar meus temores e indignações, vejo muitas dessas pessoas manifestarem os mesmo sentimentos, preocupações e mesmo indignações! 

Acontece que a Igreja está se tornando anacrônica em relação ao caminhar da sociedade. Ao afirmar isso, não estou propondo que a Igreja se deixe levar pelos rumos da sociedade, mas que deve reconhecer tais rumos, fazer uma avaliação à luz do Evangelho e agir profeticamente de forma adequada e eficaz. Para agir de forma profética e com eficácia, a Igreja necessita adaptar-se ao tempo presente, mudar sua própria visão do mundo e sua auto-compreensão. Hoje os desafios para a Missão e para a Presença da Igreja no mundo são outros! Exigem novos métodos de abordagem e análise, e de enfrentamento. Mais do que discurso teológico, é necessário que a Igreja reformule sua compreensão de si mesma, reveja os princípios eclesiológicos que determinam e justificam sua atual organização e sua administração, por exemplo, e até mesmo sua missão. É preciso que a Igreja tenha a coragem de reformar-se! 

Nas últimas postagens neste blogue, abordei vários desses aspectos: “Romper paradigmas”, “Velhos paradigmas fantasiados de novos”, “Do poder e do penico”, além de outros mais antigos; portanto, não vou abordar tais aspectos. Neste artigo quero colocar mais um aspecto, o aspecto institucional da Igreja. 

A Igreja, todas as Igrejas (denominações) são instituições sociais, estão presas e dependentes dos movimentos da sociedade humana. É um erro teológico pensar a Igreja apenas como o Corpo de Cristo sem levar em consideração que – sendo uma organização formada por pessoas – a Igreja é também uma instituição social, participa da sociedade e sofre os reveses e os avanços da sociedade onde está inserida. 

Como qualquer organização, a Igreja necessita ser administrada e bem administrada se quiser continuar existindo. É de grande ingenuidade pensar que a Igreja é diferente de uma empresa ou de qualquer outro empreendimento. A Igreja, como as empresas e qualquer outra instituição, deve ser administrada dentro de parâmetros técnicos adequados que permitam exercer seu papel na sociedade e cumprir sua missão. A Igreja, como qualquer organização humana, deve ser capaz de gerir e bem seus recursos, sejam eles humanos, financeiros, patrimoniais e espirituais. Na complexidade do mundo hoje, gestão não é improvisação, mas ação profissional, exige conhecimento técnico, e não pode ser exercida apenas pela boa vontade de pessoas sinceras e honestas, mas amadoras, que dedicam seu tempo voluntariamente para isso. O clero não é preparado para isso, por exemplo (aliás, tem sido tão mal preparado, que nem mesmo sei se consegue dar conta dos desafios pastorais que enfrentamos – e não falo exclusivamente da IEAB!), e o laicato muitas vezes é alijado da administração ou se limita a pessoas de boa vontade, nem sempre com o conhecimento técnico adequado, e que atuam voluntariamente.

Já vi, em várias ocasiões, opiniões técnicas bem fundamentadas serem recusadas pelas lideranças institucionais da Igreja sob o argumento que “Igreja não pode ser assim, Igreja não é empresa”, para justificar certas decisões administrativas totalmente insensatas e que com o tempo mostraram resultados nefastos e enormes prejuízos para a instituição… Acontece que Igreja é uma empresa sim, uma instituição, está assentada neste mundo, mesmo sendo uma “empresa de Deus”. 

Gostamos de representar a Igreja como “rebanho de Cristo”, quem, aliás, têm muitas fazendas… somos chamados a cuidar do rebanho do Senhor, COM O SENHOR, mas muitas vezes deixamos de OUVIR a voz do dono… rebanhos, fazendas, precisam ser bem administrados… Ou então gostamos de pensar a Igreja como “A Barca de Pedro”, esquecendo que Pedro era pescador profissional, sabia navegar e conduzia seu barco com técnica adequada e prudência mas quando o Senhor lhe mandou jogar as redes para o outro lado, ele deu ouvidos e fez o que o Senhor falou! (cf. João 21.4-6). 

Não serão nossos planos amadores mirabolantes, muitas vezes desesperados, que salvarão a Igreja de Cristo. É preciso dobrar o o joelho e clamar para que o SENHOR DA IGREJA a reforme plenamente! 

“Renova Senhor a Tua Igreja, começando por nossa Congregação, nossa Diocese, nossa Província!”. Esse tem sido o brado que estamos orando na São Paulo Apóstolo. 

Convido você a unir-se à nós. Se você não é episcopaliano, faça isso pela sua denominação. Ela também está ficando à deriva!

(Texto de Rev. Luiz Caetano Grecco Teixeira, in: Pirilampos e Pintassilgos. Acesso em 6 de jun 2012). 

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Australiana registra os maiores arrependimentos de pacientes terminais

Roberta Ávila

A enfermeira australiana Bronnie Ware trabalhou por muitos anos com pacientes terminais que eram mandados para casa para morrer. Apesar da situação difícil, ela afirma que todos seus pacientes cresceram muito quando tiveram de enfrentar sua própria mortalidade e Bronnie foi capaz de encontrar na trajetória desses casos lições que divide na internet, com sucesso, sobre os principais arrependimentos de seus pacientes. É difícil não refletir se teríamos ou não os mesmo arrependimentos.
- Eu queria ter tido coragem de viver a vida de maneira verdadeira para comigo mesmo, não a vida que os outros esperavam de mim. 

Segundo Bronnie, esse é o arrependimento mais comum. Quando as pessoas percebem que sua vida chegou ao fim, elas olham para trás e percebem os sonhos não realizados. "Muita gente não honrou nem a metade de seus sonhos e teve que morrer sabendo que isso aconteceu devido a escolhas que eles mesmos fizeram ou não fizeram", relata Bronnie. 

- Eu queria não ter trabalhado tanto. 

Esse foi arrependimento que Bronnie percebeu mais nos pacientes homens. De acordo com a enfermeira, eles se arrependiam de não ter aproveitado mais a infância dos filhos e a companhia da parceira. As mulheres também têm esse arrependimento, mas como a maior parte das pacientes era de uma geração em que as mulheres ainda não tinham o trabalho como principal em suas vidas, o arrependimento parece ser menor. "Todos os homens de quem eu cuidei se arrependiam de terem gasto tanto de suas vidas em uma existência voltada para o mercado de trabalho", conta Bronnie. 

- Eu queria ter tido a coragem de exprimir meu sentimentos.

Muitas pessoas reprimem seus sentimentos para evitar confronto ou mesmo porque foram educadas para fazê-lo. O resultado é que elas se contentam com uma existência que, segundo a enfermeira, é medíocre, porque impede que as pessoas aproveitem o seu verdadeiro potencial. Para Bronnie a honestidade eleva os relacionamentos a um novo patamar, uma mais saudável, ou vai acabar fazendo com que relacionamentos que não fazem bem para as pessoas acabem sendo eliminados da vida delas.

- Eu queria ter permanecido em contato com meus amigos.

Bronnie presenciou muitas pessoas se queixarem do quando se arrependiam de não ter dedicado mais tempo às duas amizades. "Muitas pessoas acabam tão envolvidas com suas próprias vidas que deixam amizades de ouro acabarem", relatou. Para Bronnie, na hora da morte as pessoas tentam, sim, deixar o plano financeiro em ordem, se possível, mas não é isso que mais conta, mas sim as pessoas que elas amam. 

- Eu queria ter me permitido ser mais feliz.

Segundo Bronnie essa é muito comum. "Muitos não percebem até o final que felicidade é uma escolha", relata a enfermeira. As pessoas ficam presas em velhos padrões e hábitos e se acomodam no que é familiar e seguro. Segundo Bronnie, muita gente passa a vida fingindo que é feliz para os outros e para si mesmo por medo de mudar. "Quando você está no seu leito de morte o que os outros pensam de você nem passa pela sua mente", conclui Bronnie.

A dica final da enfermeira: "a vida é uma escolha. É a sua vida. Escolha com consciência, sabedoria e honestidade. Escolha a felicidade".

quarta-feira, 8 de junho de 2011

POR UMA ESPIRITUALIDADE ENGAJADA


(Alguns tópicos para reflexão)       






  José Luongo da Silveira (Org) 
                                                                                                                                                                                         
“Jesus nos ensinou que amar a Deus é amar os
outros, todos os outros. Este amor é dom, abandono,
sacrifício, despojamento..”     (R.  Garaudy)

“Amor, palavra que funda
e que consome os seres.(...)”   (M.  Mendes)

  1. O Monge Beneditino Marcelo Barros, no seu livro: “O Espírito vem pelas águas[1] afirma que no terceiro milênio, as Igrejas cristãs começam a se dar conta de que o mundo mudou rapidamente e que elas precisam ver de que modos tradicionais de entender e realizar a missão não funcionam mais ou cada vez são menos adequados. 
  1. Efetivamente, a Boa Nova só é Boa Nova se soubermos transmiti-la de modo inteligível e integral ao homem de hoje. E qual o contexto do mundo de hoje?  O contexto de hoje é o que chamamos de modernidade, mais precisamente a crise da modernidade e esse tem sido um dos temas mais discutidos na atualidade. E a discussão se aprofunda quando nem ao menos temos um princípio geral de definição de modernidade. O que é a modernidade (...?). Alan Touraine, na sua obra “Crítica da Modernidade” diz que não sabemos! Ela é a fusão do múltiplo, do heterogêneo, do fragmentado, do efêmero, onde se envolve atividade racional, científica, tecnológica e administrativa. Basicamente, existem duas figuras condensadoras da modernidade: a racionalização e a subjetivação. 
  1. Até pouco tempo, o conhecimento de ponta nas ciências sociais e políticas falavam dos três momentos da mudança: a Modernidade, o neoliberalismo e a globalização. A globalização, filha adulterina do neoliberalismo fala-nos em termos tais como: transnacionalização da economia, a transculturação, a desterritorialização,  reterritorialilização e multimídia. A nova era já absorveu esses paradigmas, enquanto o homem do povo se torna sujeito passivo, mero expectador, que não entende o enredo, mas assiste ao espetáculo. Apenas sabe dizer/falar o nome dos novos deuses, mas desconhece o esquema comunicativo do discurso; ele consome o pacote pronto. 
  1. Mas hoje até mesmo o chamado período da  transmodernidade ou da desconstrução de Jacques Derrida já ficou para trás. Agora, com a era da realidade digital se fala em neomodernidade e hipermoderndade, se fala num mundo multitemporal, multiespacial e multifacetado, onde se torna crescente o sentido de excrescência, de ultrapassagem dos limites da tradição, do Estado e da religião. E nesse contexto, nesse espaço caótico presenciamos a terrível fragilização do individuo. Presenciamos a sua depressão psicológica com o “desfalecimento das utopias” [2]
  1. Aqui na hipermodernidade é que está o insólito, a contradição insuperável. Era de se esperar que essa abertura para o novo nos colocasse num horizonte aberto de inclusividade, onde se agregassem novos campos de sentido, contudo, a hipermodernidade se fecha no ETNOCENTRISMO, no perigo do pensamento único na política, na filosofia e na religião. 
  1. Caminhamos para o pensamento único, para a makdonalização do mundo. O etnocentrismo que cresce na hipermodernidade é uma visão EXCLUSIVISTA do mundo, onde o nosso próprio grupo social é tomado como centro de tudo, e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, de nossas definições do que é a existência. Trata-se de uma violência simbólica, quando não é física. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, no plano religioso é o renascimento da idéia de uma única religião verdadeira, etc. O etnocentrismo consiste em privilegiar um universo de representações propondo-o como modelo e reduzindo à insignificância os demais universos e culturas diferentes
  1. O monge beneditino Marcelo Barros diz: “O ‘pensamento único’ dominante inculca a inviabilidade de toda e qualquer mudança, a impossibilidade de encontrar uma alternativa, o convencimento de que estamos no melhor dos mundos e assim por diante. Como neste contexto, anunciar a Boa Notícia, o projeto de Deus, a utopia do Reino, o sonho de Jesus e assim realizar a missão?” E continua Marcelo Barros, “Neste mundo neoliberal, esta ‘paixão pelo Reino’ está expatriada e banida, como o próprio Evangelho. A missão cristã, sem acomodamentos nem adulterações, será sempre Utopia e Projeto, Paixão e Mística, luta e contemplação, compromisso e gratuidade. 
  1. No contexto da hipermodernidade, há a tendência de se desvencilhar de todas as formas de religião-instituição, cresce a mística individualista e emocional, uma espécie de “metamorfose do sagrado” [3]
  1.  Jacques Derrida, Gianni Vattimo e outros grandes pensadores contemporâneos se reuniram para passar a limpo o retorno do sagrado  na atualidade e chegaram à conclusão de que ‘a experiência religiosa é a experiência de um êxodo, trata-se da partida para uma viagem de retorno. A religião é experimentada como um retorno’ (Vattimo, p. 91). No lugar do marxismo e de sua negação da religião em geral, surgiu, porém, o ateísmo da indiferença. Isto parece ser cada vez mais o comportamento predominante das gerações mais jovens nos países industrializados. (H.-G. Gadamer, p. 223). 
  1. Por outro lado, as próprias religiões são responsáveis pelo triunfo do ateísmo e pela  “metamorfose do sagrado”. Novamente nos diz Marcelo Barros: “Qual o rosto de Deus, revelado por um cristianismo intolerante e dogmático que queimavam hereges e condenava cismáticos? Qual o rosto de Deus revela uma Igreja que fala de castigo do pecado e inferno? Que imagem a hierarquia religiosa dá de Deus quando nega a possibilidade do pessoal jovem ameaçado pela AIDS de usar preservativos ou impede os bispos da Alemanha a dar uma assistência pastoral a mulheres que abortaram? No prefácio do meu [seu] livro “O Espírito vem pelas Águas”, o bispo Sebastião Soares cita Simone Weil quando ela dizia: “eu reconheço quem é de Deus não quando me fala a respeito de Deus. Eu reconheço quem é de Deus na sua maneira de falar deste mundo” [4]
  1. Como RESGNIFICAR  hoje o Evangelho se ainda trazemos em nossas mãos o cheiro das fogueiras? E Marcelo Barros continua: “Como evangelizar os outros se nós mesmos não formos permanentemente tocados e transformados pelo Evangelho? E será que somos? Será que somos pastores que a si mesmo não se apascentam? Será que somos os fariseus de hoje? Em todos os nossos estudos parece que a espiritualidade segue depois da missão. Será que não seria o inverso,  a espiritualidade deve anteceder à missão? 
12. Parece que RESIGNIFICAR o Evangelho hoje seria necessário criar novas ÁNCORAS, ou melhor, resgatar VELHAS ÁNCORAS. Assim, uma espiritualidade engajada: começa pelo trabalho da renovação interior que não se dá apenas por esforço pessoal. É ação divina em nós. E só se realiza se houver a abertura do mais profundo do nosso ser à ação divina, o que nos torna pessoas novas, sinais e testemunhos deste mundo novo possível e desejado. 
13. Só que a espiritualidade de hoje passa por novos campos de sentido:

  • Espiritualidade sincrética: A espiritualidade catolicizou-se, pentecostalizou-se, umbandicizou-se, etc. Trata-se de uma espiritualidade fetichizada pelo milagre, pela magia e pela emocionalidade individual. 
  • Espiritualidade estética: A espiritualidade estética é meramente ritualista, legalista e meritória (nós, anglicanos gostamos muito de elaborados ritos e cerimônias). Esse modelo de espiritualidade, se não houver a necessária interiorização, predispõe seus praticantes a expressões estéticas de vitrine que gira em torno de aparências cosméticas e teatrais e que pode mascarar o verdadeiro sentido do culto público da Igreja. 
  • Espiritualidade de mercado: O fenômeno religioso que utiliza os instrumentos de mercado. Deus se torna uma mercadoria altamente vendável. É a marketinzação do sagrado. 
  • Espiritualidade ratzingeriana: O Cardeal Ratzinger, atual Pontífice Católico Romano,  declarou que a Igreja e a espiritualidade devem voltar ao que chamou de “a grande disciplina”, o que pode significar uma volta às fontes mais autênticas do cristianismo, ou um retorno às práticas do Concílio de Trento. Não sabemos! 
·   Espiritualidade engajada: Mas como viver a espiritualidade cristã num contexto cultural novo, hipermoderno? O monge Marcelo Barros nos dá uma resposta satisfatória, que já faz parte do Evangelho. Diz ele: “Primeiramente, a pessoa se converte, se apaixona por Deus e escuta o chamado do Cristo e, a partir de então, recebe a missão[5]”. Trata-se de uma espiritualidade pessoal, relacional, contextualizada, inserida no mundo que se chama hoje e teocêntrica.

·     Mas, como alimentar essa espiritualidade genuina, se “Ele tocou a flauta e nós não dançamos (Mt. 11, 16-17)?” E aqui estamos nós! A flauta continua a tocar.... por que continuamos sentados? 


[1] BARROS, Marcelo. O Espírito vem pelas Águas.  Ed. Cebi – Rede, 2002. 
[2] VIGIL,  José Maria. Aunque es de noche. Hipotesis psicoteológicas sobre la hora espiritual de América Latina en los 90,  Envio, Manágua: ed. brasileira pela Paulus, 1996.
[3] J.MARTÍN VELASCO, Metamorfosis de lo sagrado y futuro Del cristianismo, Sal Terrae, Santander, 1998; ANDRES TORRES QUEIRUGA, Somos los últimos cristianos… premodernos?, Qüestions de vida cristiana 190 (1998) 22-28. 
[4] - SEBASTIÃO ARMANDO SOARES, Prefácio do livro “O Espírito vem pelas Águas”, Ed. Cebi – Rede, 2002, p. 8.
[5] BARROS, Marcelo. In Reflexão feita com a CONFERLIDER, encontro dos bispos, padres e missionários da Igreja Episcopal Anglicana em Embu Guaçu, 26 de julho de 2002.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

O Proceso de dominação ético-religioso da América Latina

José de Deus Luongo da Silveira [1]
RESUMO: A imposição dos valores ético-religiosos da metrópole, com o maciço processo de evangelização desenvolvido pelos reinos de Portugal e Espanha, nas terras do Novo Mundo, nos séc. XVI até a primeira metade do séc. XVIII, constitui-se num dos suportes responsáveis pela falta de identidade latino-americana.
UNITERMOS: Imposição de cultura, metrópole, colônia, identidade latino-americana. 
1.   INTRODUÇÃO
Articular historicamente acontecimentos passados não significa conhecê-los 'como propriamente aconteceram'. Significa apoderar-se de uma memória, como ela relampagueia no momento de um perigo.  
                                                         Walter Benjamin
                                      
      Com a conquista da América Latina pelos portugueses e espanhóis, idealizada como uma terra de densas florestas, de abundância de vida animal e de incontáveis riquezas, começa a se articular o mito do paraíso terrestre[2]. Esse primeiro mito fundador é apoteótico, se vincula à fé cristã e ao imperativo de transmiti-la aos habitantes do Novo Mundo. Na perspectiva da tradição judaico-cristã dos conquistadores, a chegada ao novo continente foi providencial, ou seja, deu-se por vontade de Deus e para o triunfo da civilização cristã[3].  Na América Latina repetem-se os mesmos traços da origem do fenômeno religioso, encontrados em outras terras. Trata-se do sentido e da dimensão histórica da experiência religiosa calcada num mito de origem, num acontecimento histórico do passado, que pode ser desvelado inteiramente, ou permanecer parcialmente mergulhado na bruma do tempo, como uma experiência comunitária, contudo, tem a força de comunicar um sentido sagrado, salvífico ou soteriológico[4].
      Sem o horizonte histórico não se pode interpretar o sentido da experiência religiosa, uma vez que a revelação não acontece numa dimensão atemporal, mas inserida dentro de contextos histórico-relacionais. Assim, a revelação não é particular, mas comunitária e prenhe de historicidade. Num determinado lugar e tempo há a emergência de uma doutrina, com um significado original. Essa experiência do sagrado, quer tenha origem em um líder religioso quer se espalhe no meio do povo, espontaneamente, sem que se possa determinar a sua procedência histórica, transforma-se num mito[5], numa  narrativa fantástica  e imaginária, carregada de relatos sobre a vida de forma sobrenatural, através da qual se tenta explicar a realidade. É sempre uma interpretação simbólica e ingênua, “um saber não unificado”[6], cujo caráter cosmogônico, traduz um fato religioso.
       O mito fundador do paraíso terrestre[7], do jardim perfeito, estabelece um vínculo interno com o passado e se renova para exprimir novos campos de sentido. A sua simbolização permanece com a força de origem, que se repete e se atualiza ao longo do tempo, para comprovar a sua pertinência. Isso acontece, porque o homem é um animal de sinais e símbolos, de signos significantes que realizam a mediação entre o mundo “visível e funcional e o invisível e modelar[8]”, entre o vivenciado e o imaginário. Os grandes símbolos religiosos são criados ou descobertos[9] e permanecem no horizonte da humanidade como estruturas ontológicas subjacentes ou realidades intuídas. Trata-se do sagrado, da linguagem inconsciente do mistério, algo que está mais além (o anda não), se constitui numa ordem simbólica, num campo aberto a vários campos de sentido. Por isso, nunca se esgotam as possibilidades de interpretação dos símbolos religiosos, eles são arquétipos com cunho transpessoal e estão na raiz da nossa experiência existencial.
It is impossible to give an exact definition of the archetype, and the best we can hope to do is to suggest its general implications by "talking around" it. For the achetype represents a profound riddle surpassing our rational comprehension: (...) there is some part of its meaning that always remains unknown and defies formulation. Consequently a certain element of the "as if" must enter into any interpretation[10].  (É impossível alcançar uma definição exata de arquétipo; e o melhor que podemos fazer é sugerir as suas implicações gerais, estabelecendo uma abordagem "em torno do tema", porque o arquétipo representa um enigma profundo, que ultrapassa a nossa compreensão racional: (...) uma parte do seu sentido permanecerá sempre intangível e avessa à formulação. Conseqüentemente, um certo elemento de "como se" comporá, necessariamente, qualquer interpretação.[11])
        A história apresenta a existência do fenômeno religioso como um dos grandes símbolos, algo que se encontra no imaginário comum de todos os povos, de todos os tempos e lugares. A religião, como o significado da vida e do mundo se apresenta à consciência como algo inserido num contexto relacional[12], que se articula para a formação de uma dimensão axiológica dentro das relações de tempo e espaço[13], portanto, dentro da história. A intercomplementaridade do mundo interior e exterior dá sentido à vida das pessoas e se constituem num corpo de verdades que determina o seu agir e o seu lugar no mundo. O sujeito epistemológico responsável pela formação das estruturas cognitivas realiza a função de re/construção da realidade e marca o nível de interação mental entre o mundo funcional e o mundo modelar.  Na verdade, os símbolos religiosos são semióticos, exprimem o mistério, o desconhecido, trata-se de “um corpo distinto de conhecimento [...] uma visão dinâmica da significação enquanto processo[14]”.
       O cristianismo trazido para a América Latina, através do catolicismo (como as grandes religiões), não se contenta em recorrer somente à experiência religiosa, há o “kérygma[15]” de uma fé encarnada na história dos homens. Existe um momento inicial, focal, de construção da fé numa comunidade específica e que se sedimenta ao longo da história desse povo (exemplo: a catequese dos índios). A partir dessa constatação, o fenômeno religioso  deixa de ter uma dimensão geral, indeterminada, ou se afasta do resultado de uma iluminação individual, para expressar algo que nasce numa comunidade, na qual a revelação se fez sentir  -  a experiência imediata da fé. Esse marco, prenhe de historicidade, traz a fé à esfera de cognição, contudo, o seu princípio arquitetônico transcende as dimensões do tempo e do espaço, porque expressa uma realidade sobrenatural.
        Desse modo, os símbolos, de modo especial os símbolos religiosos, constituem-se na primeira e original leitura do mundo. E quando o homem se satura da fragilidade das sínteses científicas, que não respondem o sentido da vida, volta a abrigar-se na fé. A fé renasce e avança no mundo contemporâneo, apesar das suas ambigüidades.
       O sentido e a dimensão histórica da experiência religiosa consiste, especificamente, numa possível compatibilidade, ou uma aliança entre  a imanência histórica e a idéia de transcendência. Contudo, essa síntese satisfatória, a conciliação entre o profano e o sagrado, entre o temporal e o atemporal, torna-se difícil hoje, como foi para os conquistadores há 500 anos. Corre-se duplo risco, de um lado, a interpretação restritiva da fé, com a imposição de uma estrutura ético-religiosa, que se transforma em verdades absolutas, como fizeram os  portugueses e espanhóis; de outro lado, a ausência do sagrado conduz à pura facticidade do imanentismo secularista, responsável pelo caráter dramático da desesperança nesse início do terceiro milênio.
2. ORIGEM DA IDENTIDADE COLONIAL LATINO-AMERICANA: IMPOSIÇÃO DE CULTURA ÉTICO-RELIGIOSA
A) Antecedentes histórico-institucionais da América latina: Existem vários estudos para resgatar o sentido do projeto colonizador[16], que esteve sempre vinculado às estruturas histórico-institucionais das duas metrópoles: Portugal e Espanha. Contudo, se o projeto colonizador pretendia manter nas colônias da América Latina os suportes sócio-jurídico-culturais da metrópole, também, havia a necessidade da criação de uma estrutura própria, em razão da diversidade de situação, o que impunha um maior controle do poder central sobre as colônias, em razão do interesse político-econômico  espoliativo, já que a principal função da colonização era aumentar os domínios da coroa e prover a metrópole das riquezas existentes nas novas terras conquistadas.  Para a inserção e conservação do domínio colonial na América Latina, além da estrutura político-jurídica, a metrópole contou com um suporte indispensável, algo intangível e que está na raiz da experiência existencial do homem: o fenômeno religioso. A expansão da cultura ético-religiosa européia provocada pelo ardor missionário, principalmente, dos jesuítas e dos franciscanos,  se constituía numa ferramenta vantajosa aos interesses da metrópole. Mesmo porque, o entrelaçamento das relações entre o catolicismo e a coroa portuguesa e espanhola conferia às instituições estatais um caráter de solidez e legitimidade. A unidade da igreja significava uma bússola segura para a unidade dos reinos e do padrão cultural de colonização. Dentro desta perspectiva (do séc. XVI até a primeira metade do séc. XVIII), a dilatação das fronteiras do catolicismo, com a sua implantação nas Índias Ocidentais, oferecia a certeza da reprodução de um comportamento útil à metrópole, uma vez que os missionários permaneciam diretamente vinculados à coroa, pelo sistema do padroado.
Segundo este sistema, nenhum clérigo podia partir para as missões sem autorização explícita do rei. Os que recebiam a permissão para partir eram obrigados a jurar fidelidade ao soberano, durante a audiência que este lhes concedia. Os futuros missionários eram obrigados a reunir-se em Lisboa antes de partir, e para sua viagem deveriam utilizar exclusivamente navios portugueses. Os missionários estrangeiros estavam submetidos às mesmas formalidades; mas a permissão de viagem lhes era concedida com maior parcimônia[17].
B) Imposição de cultura ético-religiosa: A identidade religiosa lusitana e espanhola de além-mar servia aos interesses das coroas, a ponto de não existir uma fronteira muito clara entre o poder temporal e o poder espiritual, que em alguns momentos se confundiam. Izabel, a Rainha Católica de Castela, tinha obtido do papa a atribuição, o “munus” de nomear bispos (investidura), criar mosteiros e conventos de ordens religiosas e implantar a inquisição em seus domínios, tudo para prover as necessidades de expansão do catolicismo nas terras de Castela, de aquém e além-mar. Por sua vez, com menor intensidade, esse mesmo processo se desenvolveu, também, no Reino de Portugal.
       Como o projeto colonizador, além das instituições político-jurídicas, se sustentava através do suporte ético-religioso, foram enviadas às novas terras verdadeiras legiões de missionários jesuítas e franciscanos, que além de atenderem às necessidades espirituais dos colonizadores, se embrenhavam nas florestas para trazerem os pagãos[18] “à verdadeira fé”. Essa idéia de uma única religião e de uma única igreja verdadeira acompanhou o catolicismo até os tempos contemporâneos[19] e, na Idade Média, já havia obrigado, compulsoriamente, os judeus que habitavam os reinos de Espanha e Portugal, a se converterem ao catolicismo (cristãos novos). Corroborando a doutrina de uma única igreja verdadeira, o Papa Bonifácio VIII, já no ano de 1200, proclamou que fora da igreja não havia salvação, através da regra “extra ecclesian nulla salus”, com o que se ascende o poder espiritual sobre o poder temporal.   
       Esse processo de evangelização forçada dos índios americanos, e mais tarde dos escravos negros, foi uma das maiores espoliações culturais que se tem notícia na história da humanidade. A perda da identidade religiosa significa a privação dos valores que se sedimentaram ao longo de tempo e que expressa a maneira de um povo pensar, sentir e agir. O próprio Padre José da Nóbrega já reconhecia que os índios eram depositários de uma sagrada tradição religiosa:  
De tantos em tantos anos chegam uns feiticeiros de longas terras, fingindo trazer santidade; ao tempo de sua chegada, mandam limpar os caminhos, e os vão receber com danças e festas segundo o seu costume; e antes que cheguem ao lugar, vão as mulheres duas a duas pelas casas, dizendo publicamente as faltas que fizeram a seus maridos, e umas às outras, pedindo perdão delas. Ao chegar o feiticeiro com muita festa ao lugar, entra numa casa escura, e coloca aí uma cabaça em figura humana, por ele trazida… de maneia que crêem existir dentro da cabeça alguma coisa santa e divina. Estes são os maiores inimigos que aqui temos, e crer algumas vezes aos doentes que nós lhes colocamos no corpo facas, tesouras e coisas semelhantes e que com isso os matamos. Em suas guerras aconselham-se com eles…[21].
3.  O OLHAR CRÍTICO DE BARTOLOMEU LAS CASAS  –  O HERÓI DOS INDÍGENAS
               Em toda essa história de dominação e opressão, houve um homem que depois de conhecer de perto o sofrimento e o extermínio dos habitantes do Novo Mundo, tendo inclusive sido cúmplice dos espanhóis no Caribe, decide lutar contra a escravidão dos índios,  esse homem foi Frei Bartomoleu Las Casas  -  o herói dos indígenas da América. Causa-nos surpresa que, naquela época, tão poucos levantaram a  sua voz contra a opressão e o genocídio (...). Os que detinham algum poder não o faziam, porque viviam das benesses da coroa e os que não se abrigavam à sombra do poder, esses, também eram excluídos.
         Quando os espanhóis chegaram na América, no Caribe, os índios os receberam com presentes, com a inocência de amigos, mas os espanhóis se apresentaram implacáveis, caçavam, aprisionavam e queimavam nas fogueiras as lideranças e os nobres. Os maiores massacres foram perpetrados no México e no Peru.
       Os espanhóis usavam o nome da igreja para despojar os índios de suas terras. Era lido um documento em latim justificando a necessidade de passar as terras aos novos donos, explicando que os verdadeiros donos de todas as terras era a Igreja Católica. Caso houvesse resistência eram massacrados. Montezuma e sua corte foram jogados do alto da Pirâmide Sagrada e, por ironia, no mesmo lugar mais tarde, foi construída a catedral católica da cidade do México.
        Bartolomeu las Casas não podia se calar, havia participado, em 1512, da conquista de Cuba e presenciara o comandante da expedição degolar sete mil índios. Diz Bartolomeu Las Casas:
 Os espanhóis, com seus cavalos, espadas e laças começaram a praticar crueldades estranhas; entravam nas vilas, burgos e aldeias, não poupando nem as crianças e os homens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e faziam em pedaços como se estivessem golpeando cordeiros fechados em seu redil. Faziam apostas obre quem, de um só golpe de espada, fenderia e abriria um homem pela metade, ou quem mais habilmente e mas destramente e um só golpe lhe cortaria a cabeça, ou ainda sobre quem abriria melhor as entranhas de um homem de um só golpe.
       Bartolomeu Las Casas propõe o fim do trabalho escravo dos índios, fazendo-os viver em comunidades. Contudo não logrou êxito, porque os próprios índios não souberam interpretar a sua intenção e as comunidades espanholas da América o hostilizavam. Contudo, a sua luta foi sem tréguas até a sua morte, aos 92 anos de idade, no ano de 1566.
       Já o processo de colonização portuguesa não se apresentou de forma tão violenta como os massacres ocorridos nas terras espanholas do Novo Mundo. No Brasil, a catequese dos índios ficou por conta dos jesuítas, que se apresentam mais hábeis em conciliar os interesses políticos da coroa com a conversão dos pagãos, mantendo-os pacíficos nas aldeias, sob maciço processo de catequização. É óbvio, que esse processo forçado de evangelização, muito mais em terras espanholas, desenvolvido pelos franciscanos e dominicanos, causou seqüelas permanentes, ainda hoje, o negro e o índio são excluídos da sociedade, se mostram arredios e desconfiados, possuem uma religiosidade católica superficial e nunca abandonaram os seus antigos ritos e costumes religiosos, esses, subjazem mesclados com o culto católico.  Isso prova, inarredavelmente, que não é com as armas que se mata uma idéia. Não é exterminando, massacrando comunidades interiras que se impõe a lei do colonizador. Uma idéia só se mata com outra idéia. Conduto, a cultura e a religião do conquistador não foram suficientemente fortes, capazes de suplantar os costumes e tradições tribais. Após séculos de dominação, elas renasceram e se perpetuaram. Na verdade nunca morreram, permaneceram ocultas  até o momento de se tornarem visíveis.
4.  CONCLUSÃO
        Nenhuma forma de aculturação é mais violenta que o processo de catequização forçada. O processo ético-religioso lida com as categorias do inconsciente, com um enigma profundo que ultrapassa a nossa compreensão racional e estabelece uma nova estrutura conceitual da realidade, um novo filtro pelo qual vemos o mundo. Se bem sucedida a  aculturação forçada, gera autômatos, sem memória cultural, sem consciência crítica e sem vontade própria; se mal conduzida propicia a revolta e a conduta antissocial.
      Depois desse maciço processo de evangelização e dominação colonial, a pergunta que ainda hoje aflora à nossa consciência é, quem somos nós, latino-americanos? O próprio Bolívar não possuía uma idéia clara dessa identidade latino-americana, ou melhor, essa identidade apresentava-se num contexto de intermediação entre outras culturas e, por isso, tinha uma  compreensão demasiadamente imprecisa.
Não somos europeus, não somos índios, mas sim uma espécie intermédia entre os aborígenes e os espanhóis. Americanos por nascimento e europeus por direito, nos encontramos em meio ao conflito de disputar os títulos de propriedade aos nativos e manter-nos no país que nos viu nascer, contra a oposição dos invasores. De maneira que o nosso caso é extremamente extraordinário e complicado.(...) Estamos colocados num grau inferior ao da servidão". "Mantenhamos presente que o nosso povo não é nem europeu, nem americano do norte, é antes uma composição de África e América do que uma emanação da Europa... é impossível determinar com propriedade a que família humana pertencemos[22].     
        A  Identidade Latino-Americana se apresenta como “a dialética entre o não-ser e o ser-outro”. São vários séculos de dominação etnocêntrica. Herdamos dos conquistadores a língua, os costumes, as instituições e a religião. Os navegantes-descobridores-conquistadores trouxeram para o novo continente a cruz e a espada, a cruz justificava a espada e a espada protegia a cruz. Essa aliança entre a cruz e a espada foi responsável pela exploração, dominação e alienação.  De modo diferente da América do Norte[23], povoada por puritanos e outros grupos étnico-religiosos, que não encontravam na metrópole as condições para a livre manifestação de suas crenças; na América Latina, o colonizador imprimiu o seu padrão religioso. A cultura ético-religiosa européia, o catolicismo da Península Ibérica trazido para o novo continente, encontrava-se prenhe da racionalidade judaico-cristão, tanto na doutrina quanto nos ritos e cerimônias, enquanto  a religiosidade indígena e africana mostrava-se mesclada de misticismo e concepções naturalistas. As práticas religiosas dos índios e dos escravos negros eram consideradas pelo conquistador como demoníacas. Os índios e os negros eram considerados pela igreja como canibais, polígamos e idólatras. E, apesar de toda a vigilância, perseguições e conversões forçadas, apesar do embate com o catolicismo, as tradições religiosas dos indígenas e africanos permaneceram, não na sua pureza original, mas no caldo do sincretismo religioso.
        Historicamente, não há como justificar o descaso e a conivência da igreja com a dominação e a escravidão dos índios e negros.  Hoje, a Igreja fala em “metanóia[24]”, como o único caminho possível de reconciliação. Por ocasião dos 500 de evangelização, o Episcopado Latino-Americano, reunido em Santo Domingos, em 19 de outubro de 1992, procurou resgatar esse passado de genocídio e escravidão cultural, com as chamadas  “Diretrizes de Santo Domingos:
- pedimos perdão aos povos indígenas e aos negros americanos pelas vezes que não soubemos reconhecer a presença de Deus em suas culturas;
- pedimos perdão pelas vezes que confundimos evangelização com imposição da cultura ocidental;
- pedimos perdão pela tolerância ou participação na destruição das culturas indígenas e africanas;
- pedimos perdão aos negros americanos pelas vezes que nos servimos do Evangelho para justificar sua escravidão;
- pedimos perdão pelas vezes que nos beneficiamos desta escravidão nos conventos, paróquias ou cúrias[25]”.
       Os reflexos dessa evangelização forçada ainda permanecem na América Latina. Desse contexto, emerge a idéia de que não temos uma identidade cultural, somos o resultado de vários povos e diferentes culturas. Adotamos,  aferro e fogo, os valores culturais e religiosos dos conquistadores. E cinco séculos não foram suficientes para exorcizar o colonialismo, vivemos na América Latina a oposição entre dois abismos: o não ser e o ser outro.
Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é.  A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética entre o não ser e o ser outro[26].                                         
        Parece que só teremos identidade, quando rompermos com todos os processo de dependência e subordinação à Europa, e agora, aos novos conquistadores, o poderio econômico e tecnológico Norte Americano. É a América subjugando a América. Só que desta vez, dificilmente aparecem exércitos armados (só na América Central). A dominação é sutil e engenhosa, concentra-se na exploração do capital especulativo internacional, que traz  fome,  miséria e exclusão social e faz um continente rico de um povo pobre.
        Pode ser que já tenha chegado o momento de sacudirmos a poeira do tempo e gritarmos como Leopoldo Zea, em “Latino-americano na encrucijada de la história”:
não há índios, nem crioulos nem mestiços, somente homens. Homens que devem tomar consciência de sua humanidade para fazê-la valer e exigir que lhes seja reconhecida. O índio deve tomar a consciência de seu ser homem e atuar como tal nesta América[30].
        Por enquanto, a única identidade que nos unifica na América Latina é a ‘identidade oprimida’, com um forte grau de servidão aos novos colonizadores, que impõem o discurso da globalização. Somos um continente crioulo[27] ou mestiço, onde a idéia do indigenismo[28] e da negritude[29] faz com que sejamos tratados como inferiores. Somos de uma composição cultural heterogênea e continuamos a sonhar não só com o modelo europeu, mas ao longo desse tempo de maturação, também, adotamos a cultura norte americana. É possível também que ainda não tenhamos abandonado o mito fundador, de uma América como o paraíso terrestre, um jardim perfeito, primavera eterna do mundo, que até então, não revelou em sua beleza inigualável.
5. BIBLIOGRAFIA CONSULATADA
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ZEA, Leopoldo. Latino-americana na encrucijada de la história. In: ASSMANN, Hugo (Org.). Filosofia da Libertação, Mimeo, UNIMEP, Piracicaba, jun/1982.






[1] BENJAMIN, p.1.
[2] CHAUÍ, p. 35-57.
[3] Id.
[4] Parte da teologia que trata da salvação do homem.
[5]Mito: ‘Mythos’ vem do grego, passando por ‘mythu’ do latim e significa ‘palavra’.  Narrativa  simbólica, ligada à cosmogonia, referente a deuses, forças da natureza e/ou  aspectos da vida.
[6]MAGALHÃES, p. 7.
[7] CHAUÍ, p. 50.
[8] MAGALHÃES, p. 7.
[9] Doutrina da Reminiscência, ‘anamnesis’, despertar. Vide Platão, Fedro, 73 a,b.
[10] JUNG, p. 31
[11] VERISSIMO, p. 1.
[12] MERLEAU-PONTY, apud BONOMI, 1974, p. 9.
[13] SILVEIRA, p. 20.
[14] DEELY, p. 42.
[15] Kérigma: de Keryx, palavra grega que significa mensageiro, arauto que proclama a Boa Nova, pregação original cristã.
[16] CHAUÍ, p. 49.
[17] VILELA, p. 412.
[18] PAGUS, originariamente significava ‘campos’, os que habitam os pagus, para onde migravam os adeptos de outras religiões que não queriam aderir ao cristianismo, os quais eram considerados bárbaros.
[19] Só na “Lumen Gentium, parágrafo 10,12,31 e 35”, documento do Concílio Vaticano II, na década de 60, a Igreja Católica passou a chamar os outros credos cristãos de ‘irmãos separados’ e a admitir que o Espírito Santo de Deus sopra também sobre as outras religiões.
[21] PADRE JOSÉ DA NOBREGA, apud  GARUTTI, p. 2.
[22] ASSMANN, p. 13.
[23] As Colônias do Norte (Massachussets) tiveram origem, em 1620, com a perseguição religiosa desencadeada na Inglaterra. Na América exerceram livremente seus credos.
[24] ‘Metanóia’, palavra grega que significa reconciliação, arrependimento, mudança de paradigma.
[25] Diretrizes de Santo Domingos, do Episcopado Latino-Americano, reunido na cidade de Santo Domingos, em 19 de outubro de 1992.
[26] GOMES, p. 1.
[27] Criollo em espanhol e crioulo em português, significa nascido na América, sendo filho de pais europeus.
[28] O indigenismo ainda é considerado como uma forma de mestiçagem, de mescla cultural, de marginalização.
[29] A negritude se transformou num movimento cultural de resgate da cidadania do negro.
[30] ZEA,  p. 68.






[1] Professor de Ética da UNIFRA, Santa Maria, RS.